Cultura Afro
Quando a capoeira se encontra com a literatura
Projeto Vem Ler Mais Eu resulta em lançamento de livro e na instalação de uma biblioteca dedicada à prática e ao empoderamento negro
Carlos Queiroz - DP - Mestre Jarrão autografa o novo livro na tarde deste sábado (22), na Bibliotheca Pública Pelotense
Conhecer a prática e entender a história que a envolve. Esses são objetivos que norteiam o projeto Vem Ler mais Eu, proposta do Mestre Jarrão que resulta no lançamento do livro O encontro de si na capoeira e na consolidação do Espaço de Leitura no Centro de Treinamento Capoeira Filhos da Roda, do Contramestre Samuel, no Jardim Europa. A sessão de autógrafos da obra e a inauguração da biblioteca ocorrem neste sábado (22), fortalecendo a proposta que vai expandir os saberes em torno dessa expressão cultural afro-brasileira. As ações integram as celebrações dos 211 anos de Pelotas.
Basicamente, O encontro de si na capoeira é um livro de filosofia e ancestralidade. A obra de Jarrão traz relatos pessoais de aspectos filosóficos da capoeira, conhecimentos adquiridos em quase três décadas dedicadas à prática. Os assuntos vão desde as benzeduras até as relações com a matriz africana. "É sobre meu encontro com os orixás, com a religião afro, meu encontro com meu povo. Vem todos esses saberes ancestrais. Quando eu me encontro com a minha cultura eu me conecto comigo mesmo", fala.
O livro é um dos braços do projeto Vem Ler Mais Eu, financiado pelo edital FAC - Publicações da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac-RS), que tem o objetivo de levar conhecimento aos praticantes da capoeira através da leitura. Para Jarrão é importante que as pessoas não só conheçam as técnicas, os rituais, mas que também entendam como toda essa história, carregada da cultura afro-brasileira, chegou até os dias de hoje. "Vem ler mais eu, é vem ler a minha história, a minha cultura. Daí vem a ideia do livro também", comenta.
Esse é o segundo livro de Jarrão, o primeiro, Ser capoeirista, foi traduzido em inglês e francês. Para o mestre capoeira é necessário também, além de ler, deixar registrada essa história cultural. "A gente tem que escrever a nossa história. Há muito tempo o povo preto não teve a chance de escrever a própria história, pela nossa perspectiva", diz.
Segundo o capoeirista muitos dos livros publicados sobre essa prática não foram escritos por nativos da capoeira. "Esses livros surgiram a partir de outro olhar, por isso é importante registrar o nosso conhecimento, a partir do nosso olhar."
Na tarde de hoje, aproveitando as ações do projeto, Mestre Jarrão inaugura a Escola de Capoeira de Pelotas Povo que Ginga. O espaço tem a proposta de fomentar os conhecimentos ancestrais da cultura afro-brasileira, além de estimular o esporte. "Quem rege aqui são os pretos velhos. Até o símbolo da nossa escola tem os oito orixás. Não que eu tenha religião, mas eu tenho ancestralidade e eu cultuo essas crenças", fala.
Proposta em parceria
O recurso do projeto também financiou os móveis que abrigam a biblioteca e a compra de 300 livros, o espaço também recebeu a doação de cerca de 100 obras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A maioria das publicações é sobre a capoeira, mas há ainda títulos voltadas para as questões da negritude, como os livros infantis que despertam a autoestima e o empoderamento de meninos e meninas negros. "São livros que abordam as questões da cultura negra. Através da leitura a gente se conecta", diz Jarrão
Quando pensou na proposta, Jarrão convidou o parceiro, o contramestre Samuel Duarte de Souza, proprietário do Centro de Treinamento Capoeira Filhos da Roda. O local abriga há três anos um projeto de estímulo à leitura, além de fazer uma ação de reforço escolar para as crianças da roda de capoeira. "É um grupo que já trabalha em cima dessas questões e a gente sempre trabalhou em equipe", explica Jarrão.
"O Jarrão veio com a ideia do projeto de leitura e a gente já tinha aqui o Ginga Bairro, algo semelhante, mas com o reforço escolar. Falei: 'Cara, vai cair que nem uma luva aqui'. Aí conseguimos essa estrutura para as crianças entrarem e pesquisar sobre a capoeira, que é um folclore lindo", conta Samuel.
Foco nas africanidades
"A nossa proposta é incentivar a leitura, mas o foco principal é trazer as africanidades, na história da capoeira para que eles compreendam o que estão fazendo. Cada movimento, cada cantiga, cada expressão que a gente usa é carregada de história e eles precisam saber", fala a professora da rede Estadual dos anos finais do Ensino Fundamental, Rosana Vieira, que ministra as aulas de reforço do projeto.
Rosana dá como exemplo o porquê São Bento, santo católico, é considerado padroeiro da capoeira. "Aí vem de uma história mais recente, que não tem nada a ver com o período da escravidão e eles não sabem esse tipo de coisa. O projeto da leitura que vem de antes desse projeto do Mestre Jarrão tinha essa ideia, mas ele era bem pequenininho. Agora ele cresceu, com o Vem Ler mais Eu, que surgiu como uma benção para nós ", fala a professora.
A proposta de leitura do Ginga Bairro tinha apenas um pequeno móvel de madeira, onde estavam alguns poucos livros. Agora foi substituído por prateleiras e um móvel que estão abrigando as cerca de 400 publicações, que podem ser lidos no local ou em casa.
Rosana baixou um aplicativo gratuito de administração de bibliotecas, assim os interessados podem pegar os livros e levar para casa. Por enquanto não há uma data certa para entrega. "O pessoal tá bem interessado", comemora Samuel.
A professora diz que não fica pressionando para a entrega. "Eu digo pra eles: 'lê, tá com vontade de entregar porque não gostou da leitura, quem sabe troca por outro'. Eu quero que eles leiam, que gostem do que estão lendo. A nossa ideia é que eles criem esse gosto pela leitura, por isso os livros não são só sobre capoeira", comenta Rosana.
Uma dificuldade que os organizadores têm é de achar títulos sobre capoeira, o que Rosana vem contornando ao buscar obras do meio acadêmico. "Em geral o contexto é incentivar eles a lerem um pouco. Sair um pouco do celular e está dando certo", diz Samuel.
Além das crianças, capoeiristas mais experientes também estão se beneficiando com a nova biblioteca. Como o grupo busca a equidade ao aceitar crianças e jovens com diferentes síndromes ou deficiências, os livros também estão auxiliando quem vai ministrar as aulas. "Temos um cantinho com livros sobre motricidade, sobre down, altas habilidades, por exemplo. Temos aqui um universo de pessoas que não podem ser jogadas em cima do tatame e dizer que todo mundo vai fazer a mesma coisa. Os livros são pra isso. O nosso lema é que todos são irmãos, então a biblioteca é para todos", argumenta Rosana.
Saiba mais
A capoeira surgiu como resposta a violência a qual os escravizados eram submetidos em tempos coloniais e imperiais no Brasil. A partir de golpes e movimentos corporais ágeis, a luta permitia que eles se defendessem das brutais perseguições dos capitães do mato, cuja atribuição era capturar quem havia fugido.
Para não levantarem suspeitas _ os senhores de engenho proibiam que praticassem qualquer tipo de esporte _ os capoeiristas adaptaram os movimentos e adicionaram elementos coreográficos e musicais, camuflando seu verdadeiro significado. Após a abolição da escravatura, a prática continuou sendo vista como subversiva e apenas em 1937 deixou de ser considerada criminosa pelo Código Penal brasileiro. No Dia Mundial da Capoeira, 5 de julho, se comemora a multifuncionalidade dessa modalidade esportiva. (Fontes: Câmara Federal dos Deputaos e Governo do Piauí)
Acompanhe a programação
Estas ações vão ocorrer em três horários e locais:
9h30min - inauguração da biblioteca do projeto Vem Ler Mais Eu no Centro de Treinamento Capoeira Filhos da Roda do Contramestre Samuel, rua 21, número 40, Jardim Europa
14h - Sessão de autógrafos do livro O encontro de si na capoeira, na Biblioteca Pública Municipal, praça Coronel Pedro Osório, 103
17h - inauguração da Escola de Capoeira de Pelotas Povo que Ginga, praça Sete de Julho, 36 - sala 102 - em frente ao Mercado Público.
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