Descaso

"Jogaram aqui e nos esqueceram", diz cacique da aldeia Kaingang Gyró

Cacique da aldeia Kaingang Gyró, de Pelotas, lamenta falta de apoio de órgãos públicos e da comunidade, e evento na próxima semana servirá para mostrar cultura indígena

Foto: Jô Folha- DP - Cacique diz que há pouco apoio da administração municipal, estadual e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas

Desde agosto de 2017, quando deixaram o espaço em frente à Rodoviária de Pelotas e foram alocados em uma área de 7,5 hectares na colônia Santa Eulália, os indígenas Kaingang Gyró tentam utilizar o espaço como lar. Porém, nestes quase seis anos, muita coisa aconteceu - incluindo uma pandemia -, fazendo com que o desenvolvimento da comunidade esteja aquém do que sonhava o cacique Pedro Salvador. Com recursos precários e a produção agrícola afetada pela estiagem, a aldeia, onde hoje habitam 16 famílias, organiza entre os dias 15 e 21 de maio a Semana dos Povos Indígenas - Resistência Kaingang.

São muitas as dificuldades apontadas pelos indígenas. A lista passa por questões básicas, como acesso a saúde e educação, além do espaço considerado pequeno para a produção de alimentos. São cerca de 60 adultos, sem contar as crianças, o que torna impossível o cultivo em maior escala de itens básicos. Apesar de receberem apoio da Emater, a estiagem que afetou a produção de grãos nos últimos anos atingiu diretamente a colheita de milho, por exemplo.

Ao falar em nome da aldeia, o cacique não poupa críticas a todas as esferas de governo - municipal, estadual e federal -, argumentando que, atualmente, há pouco apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), por exemplo.

Segundo a indigenista Luíza Marques, que trabalha junto à Cáritas e o Núcleo de Etnologia Ameríndia (Neta) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), a Funai deveria disponibilizar cestas básicas, regularização de documentação e garantir direitos básicos previstos tanto na Constituição quanto no Estatuto. No entanto, pela falta de um polo em Pelotas, o serviço fica prejudicado.

"Hoje o recurso é muito precário", desabafa o cacique, dizendo que há cerca de seis meses não recebem cestas básicas. A maior fonte de renda das famílias é a produção de artesanato, que costumam ser vendidos em eventos ao longo do ano e, principalmente, nas praias da região durante o veraneio. No entanto, acaba sendo insuficiente, segundo Salvador. Ele diz que o espaço onde estão alocados não comporta nem a criação de animais, mantendo apenas algumas aves soltas e suínos em um pequeno chiqueiro.

Diversas são as dificuldades enfrentadas pela comunidadeFoto: Jô Folha- DP


Conforme a indigenista, o espaço onde estão os Kaingang Gyró ainda pertence à Prefeitura de Pelotas, e não à União, sendo uma zona de interesse cultural. Por isso, a Funai não pode fazer o reconhecimento. Questionada sobre sua atuação junto à aldeia, a Funai não respondeu à reportagem. Já o cacique aponta que a Prefeitura havia prometido a doação de um outro trecho de terras, de três hectares adjacentes ao local. Procurada, a administração municipal disse não conseguir acessar o cadastro de imóveis do Município devido à morte recente da funcionária responsável, e, por isso, não poderia responder perguntas sobre o terreno cedido aos indígenas.

Assistência

Tema de preocupação nacional desde o início do ano, com a crise humanitária na aldeia Yanomami, em Roraima, a saúde não chega a ser precária na aldeia, mas poderia ser melhor, argumenta o cacique. Salvador reclama da falta de médicos e afirma que as visitas de enfermeiros são quinzenais. Com uma unidade de saúde na aldeia, ele diz que recebem apenas os medicamentos básicos.

Outra parte das ações em saúde são feitas com ervas medicinais trabalhadas pelo cacique, mas ele aponta que, pela localização da aldeia, há dificuldade em encontrar boa parte das plantas utilizadas pela cultura Kaingang. A principal demanda hoje é por um veículo para levar os moradores às unidades de saúde e hospitais mais próximos em casos de urgência e emergência, algo que está sendo negociado com o Município e o governo do Estado.

Em nota, a coordenadora da Rede de Equidades da Secretaria Municipal de Saúde, Bianca Medeiros, explica que em relação ao acesso da população indígena a saúde, no que se refere a demanda por atendimento médico, o Município de Pelotas encontra-se em fase de contratação de profissionais, sendo um destinado à UBS de referência para a aldeia. Já sobre a aquisição do carro, o repasse para a compra depende de verba estadual, conforme plano de aplicação realizado junto aos indígenas. "Estamos aguardando saldo suficiente para aquisição do veículo. Mas, quando se faz necessário, é enviado transporte aos indígenas para consultas e exames", afirma.

Sobre a demanda por assistência social, o titular da secretaria que trata do tema, Thiago Bündchen, diz que é feito um trabalho coletivo, tanto com os Kaingang Gyró quanto com a aldeia Guarani Kapiovi, na colônia Santa Helena. "Na pandemia se fez entrega de cestas de alimentos, cobertores e roupas, e a última entrega foi alguns meses atrás, pois isso é um benefício eventual", argumenta.

Além disso, o secretário diz que a Emater faz entregas de cestas do governo estadual e que os próprios indígenas podem buscar na Secretaria. Bündchen afirma que todos estão com o Cadastro Único em dia, podendo acessar benefícios, além da liberação de passagens intermunicipais para visitar outras regiões. "Vamos realizar visitas técnicas para atualização de cadastros e estamos trabalhando na campanha do agasalho e alimentos. E, no âmbito do programa Capacitar, estamos planejando oferecer cursos de capacitação."

Robson Loeck, assistente técnico e extensionista rural da Emater, acompanhou a reportagem na aldeia e explicou que, desde que os indígenas foram assentados no espaço atual, o órgão atua como uma espécie de elo entre eles e estruturas governamentais. Há, ainda, assistência técnica para a produção agrícola, com o repasse de sementes para plantio e de insumos para estimular a produção.

Educação

Ponto sensível da aldeia, a escola bilíngue para crianças até o quinto ano, cujas aulas são ministradas pelo filho do cacique, enfrenta dificuldades. A estrutura de madeira, com grandes frestas, tem uma cozinha dividindo espaço com a área de ensino. E, segundo o líder, enfrenta escassez de merenda, entregue uma vez por mês pelo governo do Estado. "Às vezes a criança sai e vai comer em casa", explica Salvador.

No momento em que a reportagem foi à escola, apenas duas crianças estavam no local, comendo pães que trouxeram de casa. O restante dos alunos havia voltado às suas casas para se alimentar. Na geladeira, havia apenas uma fatia de queijo e algumas bebidas.

Em nota, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) alega que o repasse está em dia e é proporcional aos estudantes matriculados, assim como a manutenção do espaço. "Os repasses para a merenda são provenientes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e do Programa Merenda Melhor, do governo do Estado, que complementa a verba federal. O repasse é realizado em dez parcelas diretamente na conta da diretoria da instituição de ensino que adquire os gêneros alimentícios", diz a pasta.

A Seduc diz ainda que desde o ano passado o Programa Merenda Melhor aumentou em 166% a verba, passando a contar com R$ 1,16 para cada refeição, sendo R$ 0,36 do Pnae e R$ 0,80 do Estado, um acréscimo de R$ 0,50. "Com esta ação, ao invés de serem servidos alimentos como pães ou bolachas, estão sendo oferecidas refeições quentes (comida de panela) todos os dias da semana", diz a nota.

Oportunidade de mostrar à comunidade

Entre os dias 15 e 21 de maio ocorre a Semana dos Povos Indígenas - Resistência Kaingang. Segundo Luíza, a aldeia estará recebendo escolas e grupos da comunidade para ter contato com a cultura dos Kaingang, mas ainda são necessárias parcerias para patrocinar o evento. Com diversas escolas confirmadas, a verba será destinada a alimentação, estrutura e deslocamento.

Dentro da programação do evento, há atividades culturais do povo Kaingang, comidas típicas, exposição do uso de ervas medicinais, exemplo de como é feita a caça com armadilhas e arco e flecha, dança, pinturas, artesanato e outras ações.

Informações podem ser obtidas pelos contatos:

- Cacique Pedro: (53) 99295196
- Liderança Josias: (53) 99072955
- Agendamento das escolas, com Marcos, professor da aldeia: (53) 99634258
- Pix para contribuição: 51995409445 (chave celular, no nome de Josias)

Saiba como chegar

A aldeia Kaingang Gyró pode ser acessada pela BR-392. No sentido Pelotas-Canguçu, fica no quilômetro 94, à esquerda, onde se percorre cerca de um quilômetro de estrada de chão.

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