Moradia e patrimônio
A história, a ponte, as pessoas
Urbanização preocupa famílias que há 50 anos residem no Passo dos Negros, antiga região de Pelotas
Gabriel Huth -
Existe muita Pelotas que o pelotense não conhece. Prédios, pontes, pessoas. Um destes lugares não por acaso isolados é o Passo dos Negros. Importante para a história da cidade, ele é também lar para famílias que lá moram há 30, 40, 50 anos. A iminência da construção de condomínio no exato ponto onde ficam os casebres, entretanto, coloca agora em risco o patrimônio de tijolos e o de carne e osso. A criação de uma Frente Parlamentar pela Câmara de Vereadores para acompanhar o caso está em discussão.
A história conta que o Passo dos Negros foi a porta de entrada do gado oriundo dos Campos Neutrais e de Maldonado e do negro vindo da África na condição de escravo. Estes desembarcavam dos navios na barra do Rio Grande e ultrapassavam o canal São Gonçalo pelo local. Ali foi construída, à mão escrava, em 1854, a Ponte dos Dois Arcos, considerada fundamental para o desenvolvimento do charque na cidade. Mesmo recuperada em meados de 2002, a travessia feita de tijolos encontra-se atualmente corroída pelo tempo, pelo matagal, pela interferência humana.
Atualmente o Passo dos Negros segue sendo sinônimo de desigualdade social. Isolados, estão posseiros que ali residem há 50 anos. Cercados por ruas embarradas, falta de investimento público, ausência de perspectiva de melhoria. Ali moram famílias como a do sucateiro Pedro Pereira. Hoje com 70 anos, ele reside no local desde 1968. Trabalhador que era do outrora imponente engenho de arroz, não surpreendem a ele ordens para que deixe a região. No início, morava em casebre mais ao fundo, onde se concentram os pescadores. Surgiu então o investimento imobiliário na região e a primeira mudança foi necessária. O mesmo ocorreu mais recentemente, quando da construção do condomínio de alto padrão vizinho ao Passo dos Negros. À época, Pereira recebeu R$ 7 mil de compensação, investidos no teto que hoje cobre ele, a mulher e os filhos.
Em abril foi protocolada judicialmente pelos proprietários uma ação de reintegração de posse para a retirada dos moradores, que devem ser migrados ao Getúlio Vargas a partir de novembro. “É um local perigoso. Aqui todo mundo trabalha e, quando chega a noite, vai para casa dormir. Não tem um assalto. Todo mundo é amigo, em outro lugar ninguém nos conhece”, reclama, salientando que, se a proposta for de ceder para cada morador uma área próxima à que hoje ocupam, não haverá maior resistência.
Patrimonialização
No último dia 7, em meio à turbulência, o Passo dos Negros foi protagonista de edição das Conversas do Dia do Patrimônio. O evento, promovido pela Secretaria de Cultura (Secult), tem como tema em 2017 a memória territorial de diversas regiões de Pelotas. Na ocasião, 40 moradores estiveram presentes e foi discutida a proposta de patrimonializar os elementos da localidade, como a Ponte dos Dois Arcos, o Osório Futebol Clube e o antigo engenho de propriedade do coronel Pedro Osório.
A medida, já enviada ao Ministério Público, é encabeçada pelo projeto de extensão Narrativas do Passo dos Negros, da Universidade Federal de Pelotas. O objetivo, afirma a coordenadora, a professora Louise Prado Alfonso, é garantir a conservação e a salvaguarda do local, tornando-o patrimônio cultural. Com a preservação do que é físico, pretende-se reforçar a resistência de quem lá vive.
Louise, que possui mestrado em Antropologia Social e doutorado em Arqueologia, explica que o projeto tem por foco entender a hoje distorcida e pouco abordada relação entre o passado e o presente de Pelotas. A partir daí, são feitas abordagens de comunidades em situação de vulnerabilidade social tão grande quanto a invisibilidade a que são submetidas. “Pensamos em diferentes formas de habitar. A cidade, e esse não é um privilégio de Pelotas, é construída para poucos”, diz, citando o recente exemplo da remoção de usuários de drogas da região da Cracolândia, em São Paulo, pela gestão João Doria (PSDB). “Se começa limpando, gerando pequenos conflitos entre os moradores, zerando o investimento público. Aos poucos se tira de determinado local pessoas que ali habitaram a vida toda e que acabam sendo jogadas de um lado para o outro”, critica.
Mobilização
O assunto foi levantado na Câmara Municipal de Pelotas pelo vereador Marcos Ferreira, o Marcola (PT). A ideia, diz, é a criação de uma Frente Parlamentar, a fim de acompanhar o processo e garantir a preservação do local. “É uma região marco no município. A cidade precisa se desenvolver, reconhecemos isso, mas não se pode passar pela história, muito menos pelas pessoas que ali moram há tanto tempo”, argumenta.
O que diz a prefeitura
Em contato com o Diário Popular, o secretário de Gestão da Cidade e Mobilidade Urbana, Jacques Reydams, frisa ser interesse da prefeitura de Pelotas a preservação do local, tendo em vista a representação histórica da Ponte dos Dois Arcos. No caso de construção de empreendimento comercial na região, grifa, esse contexto terá de ser respeitado.
Com relação às pessoas que lá habitam, Reydams salienta a existência de proprietário daquelas terras. “É um processo (a reintegração de posse) ainda muito incipiente. O ideal é sempre que fiquem onde estão, mas não podemos esquecer que elas ocupam uma área que é particular”, comenta.
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