Deu certo
A missão do acolhimento
Seis meses depois do lançamento do Programa Municipal Família Acolhedora, dez crianças e adolescentes de Pelotas deixaram os abrigos
Paulo Rossi -
“Hoje dá pra ver que eu tô muito mais feliz. Antes eu até tinha sorriso, mas não era sincero”. A declaração, emoldurada por dentes largos e brancos e um batom roxo juvenil, serve de síntese à alegria que ronda o Programa Família Acolhedora em Pelotas. Em seis meses já ocorreram dez acolhimentos. Um número suficiente para a Secretaria de Assistência Social fechar a Casa de Triagem; o espaço onde permaneciam crianças e adolescentes até ser decidido se deveriam ser encaminhados à rede composta por seis abrigos.
A expectativa é de que até o final do ano - conforme a adesão - um dos dois lares de Meninos também possa cerrar as portas. É uma medida em sintonia com a própria legislação, em que o núcleo familiar é o ambiente preferencial ao desenvolvimento. “O ideal seria que não precisássemos ter nenhum abrigo. A ideia é que, conforme o programa dê resultados, a gente vá enxugando essa estrutura”, afirma o secretário Luiz Eduardo Longaray. E conta, satisfeito, que em breve outras seis famílias também devem estar aptas a participar.
A referência é a cidade de Cascavel, no Paraná, onde mais de 150 crianças e jovens já foram absorvidos pelo Família Acolhedora.
Dia de celebrações e sonhos
A segunda-feira será de razões em dobro para celebrar: o 2 de outubro marca os 17 anos de idade da adolescente, que hoje sorri fácil, e um mês do acolhimento. “Eu me dei agora”, resume, entre um estalar e outro de dedos. Nestes 17 anos, a trajetória não foi nem um pouco leve. A vida inteira, desde bebê, foi dividida entre passagens por abrigos e duas adoções que terminaram em devoluções. Histórias de abandono.
Histórias que não a impedem de acreditar. Nem de sonhar. “Ainda vou ter meu salão de beleza”, afirma. E, logo, mira-se no espelho para ajeitar maquiagem e cabelo. Curso de manicure, aulas de violão ou bateria, vontade de cursar Veterinária. A cabeça está cheia de planos, como é comum na adolescência. E quando a voz quase some para contar que está no 6º Ano do Ensino Fundamental, cabe a Daiane da Silva Albrecht, 26, encorajá-la para seguir em frente.
Desde que tomou conhecimento do programa, a educadora social - que atuou por anos na Casa de Triagem - decidiu que se engajaria. Hoje, com ou sem o Família Acolhedora, já projeta o futuro como referência à jovem, que tanto quer ver feliz. Sem medo de novas perdas. Um desejo que se expressa em um símbolo: mãos dadas e uma pulseira de coração.
Prontos ao aconchego
A sala tem rastro de infância: helicópteros, ônibus, carrinhos... TV sintonizada em canais de desenhos. Uma cena que não se via há tempos na casa dos Neves. As filhas do casal Kátia, 49, e Fernando, 54, já estão com 27 e 18 anos de idade e, claro, também têm curtido a ideia de se dedicar ao pequeno, de apenas três anos. Há um mês tem sido assim.
A perspectiva é de que o menino retorne à família de origem. Eles sabem e se preparam para o momento de desacolhimento, embora sem data para ocorrer. “O que não significa que eu não vá chorar na hora em que ele for embora, mas sei que ele não é meu”, enfatiza, ao repetir por várias vezes que o programa não deve ser encarado como qualquer tentativa de driblar o sistema nacional de adoção.
A alegria é ver o tanto que o pequeno se tranquilizou desde a chegada. Já não há tanto medo do escuro. As madrugadas já não são cortadas por pesadelos terríveis. O dia a dia tem sido de descobertas, para todos eles, como a compartilhada com o Diário Popular. Em tom de segredo, o gurizão, cheio de energia, contou o que mais gosta de fazer: “Jogar bola”.
E para quem ainda avalia se irá aderir ao programa, a professora afirma: “A gente entrou para o Família Acolhedora com o propósito de continuar. A ideia, depois, é receber outra criança”. Com o mesmo compromisso: servir de aconchego enquanto é definido se retorna à família de origem ou à família substituta, através de adoção.
Benefícios vão muito além de atender à lei
Está no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): o acolhimento familiar é preferencial. Por isso, o número reduzido de abrigos não deveria ser apenas uma meta a ser perseguida pelo Poder Público em todo o país. Muito mais do que atender à legislação, o Programa Família Acolhedora traz benefícios à qualidade de vida das crianças e adolescentes.
O alerta é da juíza da Infância e da Juventude, Alessandra de Oliveira, ao destacar que estudos científicos demonstram a perda no desenvolvimento emocional e cognitivo, a cada novo ano de institucionalização. Daí o apelo para que cresça a rede de acolhedores, que desejem abrir seus lares - e seus braços - à gurizada, enquanto eles aguardam que um dos dois sonhos vire realidade: a reinserção na família de origem ou a adoção.
Exceções
A lei é clara: medidas, como o Família Acolhedora são excepcionais e provisórias. Devem ser enxergadas como período de transição - conforme define o artigo 101 do ECA -, enquanto é alinhado o futuro jurídico da criança ou do adolescente. O programa não deve ser encarado como instrumento para burlar o sistema e encurtar o caminho à adoção - reforça a magistrada.
Exceções à regra, todavia, poderiam ser analisadas nos casos que envolvem adolescentes. Hoje, por exemplo, 22 jovens estão aptos à adoção em Pelotas, mas enfrentam - dia a dia - a dura espera, sem data certa para se encerrar. Se em uma situação dessas, tanto a família acolhedora quanto o adolescente desejarem transformar a guarda provisória em definitiva, a adoção poderá ser reconhecida - admite Alessandra. Antes, claro, o Cadastro Nacional precisaria ser consultado para reafirmar a inexistência de pretendentes àquela adoção.
São mitos que precisam ser quebrados a quem teme acolher um adolescente, que já traz toda uma bagagem de vivências e, não raro, de traumas. “Esse medo se rompe à medida que as pessoas se conhecem. Eles, em geral, são bastante resilientes e carentes de afeto”, destaca a juíza da Infância e da Juventude. E faz referência à campanha criada pela Tribunal de Justiça no Rio Grande do Sul: Deixe o amor te surpreender.
Saiba mais
Atualmente, 47 crianças e adolescentes vivem nos seis abrigos de Pelotas:
- Casa do Carinho
- Dois lares de meninos
- Dois lares de meninas
- Lar Aquarela (destinado aos irmãos)
- Até agora, 10 crianças e adolescentes foram acolhidos.
- 1 (UM) caso de desacolhimento também foi registrado; um bebê deixou a casa da Família Acolhedora, depois de três meses, para ser adotado.
Como funciona o programa
- Os cadastrados no Família Acolhedora recebem crianças e adolescentes, temporariamente, até que eles possam retornar à família de origem ou ser encaminhados à família adotiva.
- O período de até dois anos pode ser prorrogado.
- A Família Acolhedora recebe ajuda de custo no valor de um salário mínimo, por mês.
- Uma equipe composta pelo Juizado da Infância e da Juventude, Ministério Público, Secretaria de Assistência Social e Conselho Tutelar envolve-se na avaliação e no acompanhamento dos casos.
- A intenção é de que, uma vez selecionada, a família possa permanecer no programa.
- Nas situações que envolvem jovens, o Família Acolhedora revela uma das faces mais importantes: devido ao vínculo afetivo, os participantes do programa tendem a se tornar referência aos adolescentes, já que se permanecessem no abrigo, viveriam assombrados pela chegada dos 18 anos, quando precisam deixar a estrutura pública.
Os critérios para participar
- Ter mais de 21 anos de idade, sem restrição de sexo e estado civil
- Não ter membros da família que utilizem drogas
- Não ter intenção de adotar
- Concordância de todos os membros da família
- Morar em Pelotas
Documentos necessários
- Carteira de identidade
- Certidão de nascimento ou casamento
- Comprovante de residência
- Certidão negativa de antecedentes policiais, criminais e civis
- Atestado de saúde física e mental
Informações
Secretaria de Assistência Social - telefone (53) 3309-3628
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