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As muitas vidas - e histórias - sobre a moto
Dissertação de mestrado em Sociologia da UFPel analisa o que leva uma pessoa a escolher a profissão de mototrabalhador
Carlos Queiroz -
Eles são invisíveis à maioria da população. Mas basta um rápido exercício para mostrar o quanto pequenas dificuldades se instalariam na vida de milhares de pessoas sem a presença de mototaxistas e motoboys na Pelotas de 2017. Nada de pizza e lanches quentes entregues em casa à noite, nada de corridas apressadas até a Rodoviária para não perder o ônibus, nada de medicamentos na porta para amenizar a febre do filho. A invisibilidade, nesse caso, ganharia contornos, rostos, nomes e histórias.
Na dissertação de mestrado O futuro pede passagem e vem de moto: a experiência dos mototrabalhadores em Pelotas/RS, João Matheus Soares Miranda buscou respostas para um questionamento com vários pontos de interrogação: afinal, o que leva alguém a escolher uma atividade sem salário fixo, sem jornada estabelecida em convenção e sem garantias fundamentais à maior parte dos trabalhadores?
E a grande surpresa veio justamente nas explicações para tantas perguntas. Dentro do universo de categorias assalariadas ou estigmatizadas como "bico", os mototrabalhadores conseguiram estabelecer ao longo dos anos um padrão para o segmento. Entre prós e contras, eles conseguem construir projetos de vida, família, conquistar a casa própria e ajudar na formação dos filhos, tudo a partir do dia a dia sobre duas rodas. Com espaço, entre as jornadas extenuantes, para sorrisos e novos sonhos.
João Matheus defendeu sua dissertação junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Em 116 páginas tentou entender os motivos que levam alguém a ingressar e permanecer nesse trabalho. Abordou ainda a regulamentação do serviço, a autonomia da atividade e sua dinâmica, a instabilidade e precariedade da profissão, os riscos que a cercam, a questão do lucro sem a figura do patrão e os olhares da sociedade à categoria.
O autor lembra que em Pelotas os mototrabalhadores ainda são vistos como "úteis", enquanto nos grandes centros, como São Paulo, transportam o rótulo de "pragas urbanas", associados principalmente a figuras que não respeitam as leis de trânsito.
João Matheus também destaca o fato de muitos profissionais incorporarem o empreendedorismo e assinarem como Microempreendedor Individual (MEI).
Durante o levantamento de dados, conheceu de perto uma das realidades dos mototrabalhadores: os acidentes. Muitos carregam para sempre, nos braços e nas pernas, as marcas das quedas e das cirurgias. "Uma marca de 'guerra' basicamente", comenta. Os mototrabalhadores reconhecem que a profissão é arriscada, situação que, imaginam, conseguem calcular. "Eles acreditam que desenvolvem algum tipo de perícia, que eles podem prever o acidente. Isso me chamou a atenção."
E essa guerra é travada contra vários "inimigos", como as "fechadas" que recebem de veículos maiores, os dias de chuva, os assaltos e a falta de tempo para descansar. Afinal, se a moto está parada, não há dinheiro para honrar os compromissos.
O LUCRO
Também chamou a atenção de João Matheus os valores recebidos por esses profissionais, inversamente proporcionais à qualificação deles. De certa forma, têm um bom rendimento se for considerada a escolaridade. Muitos reconhecem que, apesar da dinâmica própria da atividade, recebem bem mais caso estivessem em um emprego formal. A ponto de dizerem: "Eu não sei como as pessoas conseguem viver com um salário mínimo".
Ao questionar o fato de já terem tido, um dia, "carteira assinada", o autor ouviu a palavra "liberdade" como argumento. E tudo o que ela representa para eles: estar sobre a motocicleta, participar de um processo de socialização, sair para a rua, conhecer pessoas e, principalmente, não estar subordinado ao patrão - ponto em destaque.
O dinheiro é uma meta diária. E, apesar de nem sempre conseguirem operacionalizar esse objetivo, conseguem racionalizar. Muitos são contribuintes do MEI e aprendem, ao longo dos anos, a importância de terem alguma reserva, até mesmo para os momentos de acidentes, quando ficam impedidos de trabalhar. Uma semana sem "corridas" representa prejuízo enorme. E constituir uma poupança sempre dependerá do movimento de clientes.
Um dos entrevistados contou que, para poder pagar a festa de 15 anos da filha, programou trabalhar mais horas por dia e conseguir, assim, levantar o dinheiro. Um exemplo de como gerenciam o tempo e o serviço. Ideal? Talvez não, mas simbólico na natureza dessa atividade que estabeleceu suas próprias regras ao longo dos anos. Outro montou o mesmo processo porque buscava a compra de um terreno e a construção da casa própria.
"Essa é a vida deles. Não dizem que é fácil. Dizem que é bom, que eles gostam." E não pensam em trocar de profissão, apenas se for para administrarem o próprio negócio (não necessariamente com mototáxi ou motoboy), sem um patrão e com a possibilidade de fazerem a gestão do próprio tempo.
O INGRESSO
Ninguém sonha em ser motoboy, reforça João Matheus. Situações de trabalho - como a perda do emprego ou a dificuldade de ingressar no mercado - levam, geralmente, à escolha. Por isso, nesse universo, são várias as histórias a serem contadas. Inclusive de quem via a atividade apenas como um "bico" e, depois de experimentar, não saiu mais, por se identificar com a relação de liberdade e ganho. "Eles exaltam muito: 'Pô, tô ganhando um dinheiro que eu não ganhava antes'."
A moto surge em momentos de dificuldade dessas pessoas. Como o veículo é mais acessível à compra, eles conseguem alguma vaga nos pontos espalhados pela cidade para dar início a uma profissão que se prolonga por anos e dá nova perspectiva em suas vidas.
MAIS VALORIZAÇÃO
As pessoas devem tentar "enxergar" por trás dos capacetes um trabalhador, alguém que está tentando ganhar a vida de forma honesta, observa o autor da dissertação, apesar de serem invisíveis à maioria. Afinal, e como os mototrabalhadores dizem: "O cara que briga comigo no trânsito é o mesmo que daqui duas horas vai quer a pizza quentinha em casa". E irá recorrer a quem para entregá-la?
O olhar dos mototrabalhadores para a profissão
Pontos positivos
- A autonomia (são livres para trabalhar, sem chefia)
- A sociabilidade (podem conversar com as pessoas nas ruas)
- O lucro (obtido em cada corrida)
Pontos negativos
- Os riscos (de acidentes)
- Os dias de chuva (cai o movimento)
- Os assaltos (os motoboys sofrem mais porque geralmente perdem a moto)
Frase colhida pelo autor da dissertação com um trabalhador, de nome Leandro
"Fui batendo de porta em porta, fazendo o meu serviço, os meus clientes por conta própria. Foi assim que eu fui evoluindo e criando o meu serviço. Eu desenvolvi uma técnica minha mesmo de trabalho, não aprendi com ninguém. Várias pessoas já deixaram de me chamar, não sei se pelo meu jeito ou pelo valor que eu comecei a cobrar... A gente tem que ir valorizando o trabalho da gente. (...) Foi com muito suor, mas é uma base bem forte, tenho um nome bem forte na cidade, todo mundo me conhece pelo trabalho que eu faço!"
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