História

Descobertas por trás de cada fragmento

Equipe do projeto O Pampa Negro, da UFPel, dedica-se à análise e à restauração de peças escavadas na charqueada São João em busca de informações e hipóteses do cotidiano escravo na região do arroio Pelotas

Carlos Queiroz -

Poderiam ser só ossos. Restos de alimentos. Mas não são.

Sob o olhar especializado de pesquisadores, os resíduos - possivelmente de cervos ou de cabras e ovelhas - transformam-se em hipóteses sobre o cotidiano de escravos na Charqueada São João, nas margens do arroio Pelotas, Zona Leste do município. É mais uma etapa do projeto O Pampa Negro: A Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). 

E enquanto aguarda portaria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), para dar início à nova etapa de escavações na charqueada, a equipe dedica-se às análises e interpretações no Laboratório de Estudos Interdisciplinares de Cultura Material (Leicma). E o que não faltam são fragmentos a estudar. Ao todo, cerca de 2,6 mil peças foram recolhidas, ao longo dos dois meses de trabalho de campo no ano passado.

"Esses restos alimentares de cervídeos ou caprinos nos permitem fazer inferências de que os escravos tinham uma certa autonomia para poder caçar", afirma o arqueólogo Aluísio Gomes Alves. A hipótese também é levantada a partir de um cachimbo de caolim, produzido na Holanda, que poderia ter sido distribuído pelo dono das terras - como estratégia paternalista - ou também adquirido diretamente pelos escravos já que, pelo Código de Posturas da época, eles poderiam transitar em horários restritos e devidamente identificados por bilhetes, que comprovassem a autorização do "senhor" para estarem nas ruas. Uma prática realizada em toda a América. "É possível aliás que os escravos tenham comprado todas as louças e cerâmicas encontradas", lembra o coordenador do projeto, o professor Lúcio Menezes. Mas destaca pedaços de cachimbos com decoração africana moldados a mão.

Momento é de chamamento à comunidade
Memórias compartilhadas pela comunidade, em especial por praticantes das religiões de matriz africana, irão se somar aos estudos.

Uma peça de metal, retirada debaixo da estrutura construtiva da senzala-galpão, revela culto a Ogum. Um outro artefato de argila, possivelmente utilizado em oferendas para orixás, também ingressa nesse universo da fé. A palavra, principalmente, de mães e pais de santo deverá, portanto, se tornar mais uma fonte de informação, a se juntar às escavações, às observações minuciosas em microscópio e às comparações com apontamentos de outras pesquisas no Brasil e no mundo.

E é, justamente, este contato direto com a população que ajudará a compor o doutorado da venezuelana Elis Meza, através da Arqueologia Comunitária. "Todo esse trabalho também contribui à valorização do passado negro", destaca a aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPel.

Teoria reforçada
A análise do inventário e a riqueza de fragmentos encontrados na grande trincheira aberta na São João, em 2016, permitem afirmar: os restos da construção do século 19, que surgiram debaixo da terra e encheram os olhos dos pesquisadores, apontam a um espaço multifuncional. Um local que teria servido tanto de senzala quanto de ambiente de sociabilidade dos trabalhadores, assim como para depósito de ferramentas e armazenagem do charque. A antiga localização do prédio na propriedade, favorável ao sistema de vigilância dos escravos, é mais um aspecto que reforça a teoria do galpão-senzala.

Pampa Negro deve ganhar exposição
Uma pequena parte das peças irá compor exposição a ser aberta, possivelmente em outubro, na própria Charqueada São João. O empresário Marcelo Mazza Terra não esconde o entusiasmo com a diversidade dos fragmentos. Pedaços de louça, vidros de todos os tipos e tamanhos, uma panela de cerâmica (parcialmente reconstituída), talheres, botões, um anel, restos alimentares... 

Objetos que remetem a práticas adotadas, como os pedaços de vidro com empunhadura e polidos de um dos lados, para que pudessem servir de faca sem ferir as mãos - conta o acadêmico de Antropologia, o venezuelano Lino Zabala. São descobertas que reforçam a convicção de saber cada vez mais. Para respeitar e valorizar passado, presente e futuro.

"Temos cada vez mais certeza de que precisamos dessas parcerias para ir em busca de conhecimento e de informações de como viviam. Sabemos do lado desumano das charqueadas", afirma Mazza, pronto a receber também à nova fase de escavações. E ao conversar com o Diário Popular, reiterou a posição de que o trabalho arqueológico pode, sim, ocorrer em paralelo ao desenvolvimento econômico.

Saiba mais
- Além fronteiras - As descobertas do projeto O Pampa Negro: A Arqueologia da Escravidão na Região Meridional do Brasil serão apresentadas nos dias 14 e 15 de setembro em conferência e workshop no Centro para Pesquisa de Afro-latinos da Universidade de Harvard. A tarefa estará nas mãos de Lúcio Menezes, doutor em História, que levará os seis anos da pesquisa e as nove charqueadas estudadas, até agora, aos Estados Unidos.

A experiência na São João será um dos pontos centrais da apresentação. A charqueada, que pertenceu ao português Antônio José Gonçalves Chaves, funcionou por 130 anos - de 1807 a 1937 - e, na safra, chegou a contar com até 200 escravos.

- Alvo em novas áreas - Um mapa de 1838 elaborado pelo segundo-tenente da Armada, Pedro Garcia da Cunha, serve de base para definição de áreas, às margens do canal São Gonçalo, que devem virar alvo da equipe do Pampa Negro no futuro. A antiga Chácara da Brigada seria apenas um dos locais de interesse.
A riqueza de detalhes do velho mapa serve ao cruzamento de informações atuais, através de um software de geoprocessamento, que ajudará a definir os próximos objetivos, conforme os tipos de uso que as propriedades possuíam nos séculos passados - explica o arqueólogo Aluísio Alves.

- Contribuições
Os interessados em contribuir com informações podem fazer contato com a equipe do Laboratório de Estudos Interdisciplinares de Cultura Material - vinculado ao Instituto de Ciências Humanas (ICH) - de segunda a sexta-feira, das 14h às 18h. O Leicma funciona em novo prédio da UFPel, na rua Almirante Barroso, 1.202 (antigo Campus II da UCPel).

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