Leitura
Os livros contam a história real de Zeni
Instalada com sua carrocinha de cachorro-quente na rua Dom Pedro II, em frente à UCPel, enquanto Zeni não está atendendo está lendo
Fotos: Flávio Neves
A leitura era um passatempo que virou hábito. O aprendizado absorvido das páginas foi o responsável por mudar os pensamentos de uma pelotense de coração, oriunda de Herval. A rotina de Zeni Costa, 52, começa ainda cedo da manhã. Logo depois do amanhecer ela já está em pé para atuar como funcionária pública, na área de serviços gerais da Escola Estadual de Ensino Médio Coronel Pedro Osório, às 6h30min. Para complementar o orçamento, uma jornada dupla precisa ser realizada. Sai às 15h30min de um serviço e às 16h inicia a segunda etapa, em uma carrocinha de cachorro-quente onde ela prepara o alimento até as 22h30min.
O veículo adaptado para fazer os cachorros-quentes - localizado na rua Dom Pedro II, em frente à Universidade Católica de Pelotas (UCPel) - fez parte dos estudos de muitos alunos que passaram pelo município. Há 18 anos é dona Zeni que faz a combinação perfeita do pão com a salsicha e os condimentos. A cena observada pelos acadêmicos já é clichê. Enquanto ela não está atendendo, está lendo.
Ainda em 1998, incentivada pelo sociólogo e professor da Universidade, Jairo Nogueira, a leitura começou a fazer parte desta história. Na época, cansado de ver a moça sentada à espera dos clientes, o professor deu a dica preciosa: livros para que as horas não se estendessem. E foi assim que a funcionária pública se encantou pelo poder das palavras.
Os movimentos rápidos e precisos das mãos enquanto produz o lanche é desigual à fala calma e ao sorriso sempre estampado no rosto. Sentada no mesmo lugar, passando despercebida por muitos em um cenário de intenso movimento. Mas basta conversar com ela cinco minutos para notar a riqueza do conhecimento gerando pelos livros. Apesar de estar diariamente em frente a uma universidade, o mundo acadêmico está apenas na idealização de Zeni. As oportunidades só lhe permitiram o Ensino Médio, mas isso não cessou sua sede de conhecimento.
Diferencial
A funcionária pública é uma exceção. Em casa ela possui um prateleira repleta de livros lidos - cerca de 200 -, além de todos aqueles emprestados pelos amigos e consumidores de cachorro-quente. Em média ela lê um livro por semana, dependendo do número de páginas - enquanto o brasileiro lê apenas quatro livros por ano, entre literatura, contos, romances, livros religiosos e didáticos. Deste total, dois são absorvidos por inteiro e dois em partes. Os dados que apontam essa situação são da pesquisa realizada entre junho e julho de 2011 pelo Instituto Pró-Livro (IPL), com o apoio da Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros), Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). A pesquisa Retratos da leitura no Brasil é um levantamento que desde 2000 - sua primeira edição - é considerada o maior e mais completo estudo sobre o comportamento do leitor brasileiro em todas as regiões do país.
Os personagens fazem companhia para Zeni, que mesmo cercada de pessoas não se alonga nas conversas. Ela já leu cerca mil obras, de diferentes assuntos. Os preferidos são os romances, mas na última semana dedicava-se a Você sabe estudar? Quem sabe, estuda menos, de Claudio de Moura Castro. Conciliado a este, ela estuda um didático de anatomia. Questionada se está estudando para algum concurso, relata que apenas tem interesse em saber como funciona o corpo humano. Segundo Zeni, a leitura mudou seu olhar sobre o mundo, ampliou seus conhecimentos e aperfeiçoou seu vocabulário. “As pessoas perguntam o que estou lendo e isso já dá abertura para conversar. E é assim também que surgem as trocas.”
Em uma geração ligada à tecnologia e à internet, Zeni conta que está apreendendo a mexer nas redes sociais e em aplicativos de bate-papo. Mas que isso não interfere na sua vontade de aprender com as páginas que lê todos os dias.
O sociólogo que despertou essa faceta, Jairo Nogueira, relata que a vendedora, com sua simplicidade, sempre demonstrou dedicação com a vida e com as pessoas ao seu redor. A leitura teria vindo para se agregar a sua personalidade.
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