Humano
Os passos bonitos e necessários do Consultório na Rua
Serviço da Secretaria de Saúde oferece vacinas, testes de DSTs, curativos, entre outros cuidados
Gabriel Huth -
O trabalho começa cedo. Antes das nove, Sandra da Cruz Alves e Ineida Cabreira Moraes, assistentes sociais, se juntam a Andressa Hoffmann, enfermeira, e partem da Secretaria de Saúde (SMS), passo a passo, para realizar atendimentos a cidadãos, cujo teto é o céu, pelo programa Consultório na Rua, implantado em 2012 pela prefeitura. Atualmente, o projeto tem 280 pessoas cadastradas e atende dez, 12 pessoas ao dia por toda a Pelotas. Elas recebem vacinas, avaliação clínica, auxílio para procurar emprego, conversa, sorriso, vínculo.
Cada uma das três tem características próprias, é interessante notar: Sandra, responsável pelos cadastros, por exemplo, sabe dado por dado de cada um dos assistidos. Do nome à data de nascimento, passando pela trajetória até a situação atual, espanta como ela conhece profundamente pessoas invisibilizadas pelos mais variados setores da sociedade diariamente. Moradora da zona rural, ela pega dois ônibus e viaja durante quatro horas, todos os dias, para fazer parte do trabalho.
Ineida, a "tia Mônica" - o apelido vem da infância, quando costumava bater nos valentões para defender os irmãos -, ganha qualquer um na conversa. É carinhosa, comunicativa, experiente - 15 anos no Programa de Redução de Danos antes do Consultório na Rua e parece estar ao lado dos assistidos nos bons momentos e também na dureza cotidiana, já tendo inclusive participado de revista da polícia ao lado deles.
Andressa, por fim, é quem tem a missão de, três turnos por semana, aplicar vacinas, exames, testes de HIV, sífilis e hepatites. Tem quem pareça ter vindo ao mundo com função predeterminada, é o pensamento que fica. Ela diz que o próprio olhar foi modificado desde que ingressou no Consultório na Rua.
Ao longo do percurso o trio vai encontrando velhos conhecidos, com quem há forte conexão, sinceridade, olho no olho. "Eles nos dizem se sentir pressionados dentro dos hospitais e centros de atenção. Nas ruas estão em casa, com regras próprias", explica Ineida, destacando que no início a aproximação não é fácil. "No início íamos para o Pop Center fazer atendimentos e criar vínculos. Hoje em dia a informação do trabalho já foi difundida entre eles mesmos, todos nos conhecem e sabemos respeitar quando não estão querendo ajuda em algum momento por determinado motivo", finaliza.
Nada é mais difícil, porém, do que ficar sabendo da prisão ou morte de algum dos acompanhados, como o homem esfaqueado na Marechal Deodoro, no início do mês. "Alguns querem voltar para casa, sair das drogas, mas não conseguem", lamenta Andressa, lembrando de uma terça-feira em que atenderam menina com o corpo todo machucado e senhor com grave infecção respiratória morando em um carro.
O primeiro que o grupo encontra é André, na Duque de Caxias próximo ao Pop Center. Trabalhador da reciclagem, morava antes com mais dois rapazes em casebre na mesma região. Após serem expulsos, montou o próprio canto. Prefere ficar sozinho, elas dizem. "É um trabalho importante, nos dão bastante atenção. Não é todo mundo que faz isso", comenta ele para depois dar o braço para ser vacinado.
Os locais de maior concentração são as praças e parques da cidade, como o Dom Antônio Zattera, na avenida Bento Gonçalves. Na saída de campo acompanhada pelo Diário Popular, o grupo procurou por lá, sem sucesso, um dos jovens acompanhados, ao que a preocupação veio. "Ficamos preocupadas, mas isso acontece. Alguns somem e depois voltam", diz Andressa.
No mesmo ponto o trio avista aglomeração nos bancos próximos à Gonçalves Chaves. Elas estranham, assim no início, pareciam novos estranhos. Mais de perto, reconhecem. João e amigos haviam usado drogas durante a noite e, após caminharem por horas, pararam no parque com profundos machucados nas solas dos pés. Tratamento, testes e vacinas duram cinco minutos. A conversa, mais de 20, regada a risadas.
30 novos acompanhamentos em junho
Só no último mês, o Consultório na Rua somou 30 novas pessoas acompanhadas. A maioria, do total, de homens vindos de outras cidades, dependentes de drogas, portadores de transtornos mentais. Em grande parte, sem terem cometido crimes, mas há aqueles com antecedentes. A hora do atendimento, porém, é um raro momento em que não há julgamento. "Quando fazemos saída de campo, sempre surge alguém dizendo que temos de fazer algo para tirar as pessoas dali, apenas jogando para outro lugar. Fazer higienização social não é nosso trabalho e não concordamos com isso. Nossa missão é promover saúde", frisa Ineida, contando casos em que teve de convencer moradores de rua que são, bem, gente.
Odanir é um deles. Ele pede a Andressa que traduza formulário apresentado em posto médico e mostras feridas que, diz, foram causadas por raiva. A enfermeira desvenda o que estava escrito no papel. Odanir agradece e conta sua história. Oriundo de Porto Alegre, veio para Pelotas no início "fugido de uma verdadeira guerra". No curto espaço de tempo já recebeu convites para ingressar no tráfico, porta mais fácil e rápida para quem precisa sobreviver. Não aceitou. Quer trabalhar com pintura, construção de rebocos, artesanato. Apoio para seguir em frente ele terá.
O trabalho em números
280 pessoas acompanhadas
10 a 12 pessoas atendidas por dia
2 horas e 30 minutos diárias de caminhadas pela cidade
5 pessoas na equipe, entre agentes redutores de danos, enfermeira, psicóloga e assistente social
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