Opinião
“A douta ignorância”, 600 anos
Por Paulo Rosa
Caps Porto, Ambulatório Saúde Mental, Hospital Espírita, Telemedicina PM Pelotas
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Livro é magia mesmo. É o caso deste, escrito em 1440 pelo cardeal católico alemão Nicolau Krebs, que passou à História como Nicolau de Cusa, ao adotar o nome de Cusa, sua cidade natal. Tem algo além do real o fato de que se possa ter em mãos um texto escrito há séculos e que mantenha ainda a capacidade de abalar o sossego do leitor, exigindo-lhe não só reflexões, mas elucubrações mil e revisões de conceitos.
As 190 páginas compõem, na verdade, três livros sob o mesmo título de Douta ignorância. Este aparente oximoro já havia aparecido anteriormente, explica-nos o editor, em textos do Pseudo-Dionísio e em epístolas de Agostinho. O capítulo 1 do Primeiro Livro, pág. 3, abre-se para uma questão magnífica, expressa no título: “De como saber é ignorar”. As primeiras palavras do cardeal Nicolau são: “Vemos que, por uma graça divina, há em todas as coisas um desejo natural de serem do melhor modo que lhes permite a sua condição natural, que agem em ordem a esse fim e dispõem dos instrumentos adequados. Entre estes, a conatural capacidade de julgar corresponde ao objetivo de conhecer, para que não seja em vão a apetência e cada um possa atingir no [objeto] amado o repouso da sua própria natureza. E se, por acaso, isso não é assim, deve-se necessariamente a qualquer acidente, como acontece com a doença, que falseia o gosto, ou com a opinião, que falseia a razão… Mas, todos os que investigam julgam o incerto, comparando-o, em termos proporcionais, com pressupostos certos. Toda investigação é, pois, comparativa e recorre à proporção”.
Quão atuais são estas proposições. Elas antecedem em séculos os avanços realizados pela Física moderna, descrevendo, cientificamente, a questão da incerteza, o que teve enorme repercussão sobre a Filosofia contemporânea. Estes desenvolvimentos, necessariamente, nos tornam modestos nas afirmações sobre qualquer assunto, varrendo de vez com a questão de termos certeza absoluta sobre alguma afirmativa, seja científica, filosófica, religiosa, psicanalítica, para ficarmos apenas em discursos prevalentes.
O discurso de Nicolau de Cusa é também uma vacina contra nossa arrogância, sempre a ameaçar-nos, enganosamente, com a sensação de certeza. Tão apaziguadora sensação, tem a capacidade de encobrir a própria ignorância, mantendo-a distante de nossa percepção.
Aos interessados na questão religiosa, o editor português, na introdução, refere que “o cume da sua teoria e o termo de sua caminhada, propondo a substituição de todos os outros nomes avançados para designar Deus por um extremamente simples e significativo, posse ipsum, (itálicos do tradutor), o Próprio Poder ou o Poder-ele-Próprio, essa ‘silenciosa força do possível’”.
Nicolau de Cusa, 1401-1464, aponta, há seis séculos, e luminosamente, que saber é dar-nos conta do quanto ignoramos, salvadora e mestra douta ignorância.
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