Artigo

Fernanda Torres fala e diz

Por Paulo Rosa

Caps Porto, Hospital Espírita, Telemedicina

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Fernanda Torres, atriz e roteirista, falou e disse. Tratou, na Folha de S. Paulo destes dias, do nosso humano abominável atrativo pela guerra. Para tanto se ocupa de dissecar Tolstói no magistral Guerra e Paz, detalhando sua estratégia pessoal para digerir as 1,5 mil páginas do romance. Recomenda - asseguro, funciona - para não morrer sufocado pelos longos nomes próprios das dezenas de protagonistas, "ter uma tabela periódica dos personagens à mão", pois, "o príncipe Nicolai Andreiévitch Bolkónski pode aparecer como o Príncipe, ou Nicolai, ou Andreiévitch ou Bolkónski; pai de outro príncipe, Andrei, também Bolkónski, que além de atender pelas mesmas alcunhas do genitor, volta e meia é chamado de Nicolaiévitch, filho de Nicolai".

Mas o sumo de Guerra e Paz se revela na parte final, coisa que a atriz destaca. Tolstói arremata "o livro com uma tese sobre a vontade inarredável dos povos", comenta a escritora. Aponta que tal mortífera vontade habita o coração de cada um de nós, fato relevante para a construção tanto de um Napoleão ou um Alexandre, o Grande, quanto de um ditador qualquer, ou de meros aspirantes, de alguma republiqueta longínqua ou, desgraçadamente, próxima. O somatório dessas sombras silenciosas de cada um alcança, ao ganhar volume, a configuração de um monstro, encarnado, então, em algum Hitler ou um Trump boçal qualquer. Alguém, - aqui o sinistro -, tipos dados a 'tenebrosas transações', como para dar voz e carne ao desejo oculto das massas.

"As guinadas da história seriam causadas menos pela ambição, estratégia ou poder de heróis revolucionários, generais e imperadores e mais pelo somatório dos ínfimos desejos da manada de Zé Ninguéns".

"De fato, exausta e descrente de uma solução factível para o problema crônico da miséria e da segurança pública, parte relevante do eleitorado flerta com a possibilidade do extermínio sumário das Faixas de Gaza do País", completa.

"Tolstói tem lá sua razão. Não são Putin, o Hamas, Netanyahu, Trump, Erdogan, Kim Jong-un, Noriega, Maduro, Messias, Braga Netto, Heleno, Milei e o Chega, somos nós mesmos e a nossa velha pulsão de morte", contextualiza.

O que valorizo no escrito de Fernanda Torres é que põe em evidência a complexidade dos momentos autocráticos que surgem em qualquer democracia, mesmo nas que pareçam consagradas. Nada está estabelecido e nada tem ponto final. Qualquer governo que se pretenda libertário tem de construir-se dia após dia, mesmo que defenda igualdade, fraternidade, inclusão. Os ditadores sabem que precisam vigiar e o cumprem à risca. Nós devemos, trocando o sinal, adotar, além da vigilância, a imensa condição de construir e reconstruir, sem pausas. Recorrendo a Unamuno: "a gente morre e nasce todos os dias".

Temos uma pulsão de morte pulsando no peito, alerta-nos a vibrante Fernanda Torres. Essa puxou à mãe e ao pai, sendo ela mesma, isto é, dá um passo além.

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