Opinião
"Vou me casá cum sinhá"
Por Sergio Cruz Lima
Presidente da Bibliotheca Pública Pelotense
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Em uma casa nobre da rua Matacavalos morava um indivíduo magro, fanadinho, pálido, imberbe, de andar rápido, conhecido pelo apelido de Picapau. O motivo da alcunha residia no enorme nariz, ridiculamente aquilino, cuja ponta ultrapassava o lábio inferior. O Picapau, uma figura de rua do Rio de Janeiro, trajava com decência, usava uma carapuça e, quando fumava, o charuto saía-lhe do crescente formado pelo queixo e o lóbulo nasal, apartando pelo meio a vistosa prenda. Como produto teratológico, o pobre idiota poderia figurar em um museu. Estimado no seio da família que o abrigava, as manifestações do seu sentir não significavam mais do que um devaneio de idiota, uma preocupação de imbecil.
Na rua, o ligeiro Picapau era seguido por moleques que lhe davam trotes, que puxavam-lhe o paletó, que gritavam, perseguindo-o : "Ó Picapau! Ó Picapau!" E ele corria, saltava, voava... "Vou me casá cum sinhá", dizia ele em casa e aos conhecidos: "Sinhá é tão boa! Quero tanto bem a sinhá!" Mas um dia a moça foi pedida em casamento. Os escravos e empregados da casa, rindo e zombando, interpelaram-no: "Então, Picapau? Sinhá vai casar?" Convencido, ele respondia: "Não é possível! Não é possível!" Eis que o dia do casamento chegou. O salão estava cheio de flores, os padrinhos esperavam a noiva, os convidados participavam da felicidade do novo par. No portão, vestido como para o noivado, Picapau aguardava. Seu semblante tornava-se lívido, a inquietação brilhava-lhe no olhar, uma agonia íntima e profunda gemia-lhe no coração, como a derradeira saudade à cabeceira dos supliciados. Quando a noiva surgiu, ele a fitou um instante e, apelando para a sua rudimentar razão, murmurou consigo ainda uma vez: "Não é possível!" Suspirando, abriu-lhe a portinhola do carro, deu-lhe passagem e retornou a seu posto. Quando o préstito chegou ao templo, o Picapau já perdera a última crença e a última esperança. Mesmo assim, jogou-se no carro dos noivos, puxou nervoso a portinhola, encarou a noiva e exclamou prenhe de dor: "Meus olhos viram! Agora eu creio, sinhá!" E desapareceu...
A noite não podia ser mais alegre: harmonias, perfumes, sonhos que não findam, ilusões que não mentem. Tarde, bem tarde já, a quietação se fez nas salas e no banquete. As bênçãos do céu cantavam em torno dos cônjuges, e os alvos cortinados do leito nupcial, como as asas do anjo da guarda, protegiam o santuário da família nascente. E vem o amanhecer. Escravos iniciantes do trabalho diário, atônitos, encontram um cadáver vestido de preto e com a língua de fora pendurado a uma corda presa no galho de um tamarineiro, balançando aos tons indecisos da luz e do nevoeiro... O Picapau se enforcara!
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