Eduardo Ritter
A arte de flanar pela madrugada
Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Sou um sujeito noturno. Desde cedo, ainda nos tempos de colégio, sempre que conseguia trocava as aulas de manhã pelas de tarde. Apenas no Ensino Médio não consegui fugir de acordar às 6h da madrugada e quase morria de sono _ talvez essa fosse a explicação para as minhas notas... Depois, na faculdade, trabalhava de dia e estudava de noite. Após as aulas, curtia ir para um bar beber com os colegas e conhecer gente nova e, no dia seguinte, morria de sono, mas me divertia como nunca. Ao longo da vida segui curtindo a madrugada, flanando pelo mundo. Inicialmente eu flanava pelas ruas escuras e hoje em dia caminho pelos livros.
Já andei sem rumo por diversas cidades: desde a minha terra natal, Santo Ângelo, até a vizinha Ijuí, onde me formei, Pelotas e outras, mais distantes, como Curitiba, Rio de Janeiro, Balneário Camboriú, San Diego, Las Vegas e Nova York. Fazia isso geralmente voltando de alguma festa, aproveitando o caminho para casa (ou para a pousada) para refletir sobre a vida. Você caminha por ruas desertas, cruza com um ou outro perdido da madrugada, passa por esquinas vazias e, ao mesmo tempo em que está atento a tudo o que acontece ao seu redor (pois não dará a chance de alguém te pegar desprevenido), você reflete profundamente acerca do universo em que você habita. Você fica olhando aquelas ruas e avenidas completamente vazias e as compara com a loucura que é durante o dia.
Lembro de quando fazia pós graduação em Porto Alegre e certa vez, após um evento da área que havia sido realizado em Caxias do Sul, depois de todo o povo do congresso ter voltado para as suas casas, caminhei do centro até o bairro Santo Antônio por volta das 3h da madrugada. Enquanto caminhava, o ar que batia em meu rosto tinha um gosto especial: era uma mistura de saudade antecipada, aperto no peito, com certo prazer de liberdade, de vontade de gritar aos quatro ventos qualquer palavra relacionada com amor e fé, enfim, era uma reflexão que misturava nostalgia com esperança. Enquanto saía da Lima e Silva, entrava na Venâncio e seguia meu rumo pela João Pessoa, cruzava com um ou outro remanescente da madrugada. Às vezes avistava um vulto vindo ao longe, mas quando o via se aproximar enxergava em seus olhos um ar de pavor, provavelmente tendo a mesma desconfiança que tem qualquer pessoa que anda às 3h da madrugada pelas ruas de Porto Alegre.
Outra flanada semelhante fiz no Rio de Janeiro, também após um congresso da Intercom. Na ocasião, andei pela Candelária às 5h da manhã, provavelmente no mesmo horário em que décadas atrás menores eram chacinados pela polícia. Nesses dois casos eu era um destemido jovem com menos de 30 anos que não tinha nada a temer (ou, como diria minha irmã, com mais sorte que juízo). Já enquanto estive nos Estados Unidos, as flanadas eram mais seguras, mas igualmente reflexivas. Acho que as flanadas pelas ruas foram substituídas definitivamente por madrugadas lendo livros e vendo filmes e séries durante a pandemia e, pelo menos até agora, nunca mais voltaram.
Confesso que não sinto muita falta das andanças noturnas pelas cidades. Estou gostando mais, especialmente no outono e inverno, de caminhar sem rumo pelas páginas dos livros, conhecendo personagens novos, visões de mundo diferentes, vivendo cinco mil vidas em algumas madrugadas com um pouco de vinho e fogo na lareira. A única semelhança entre o antes e o agora é que minhas flanadas seguem sendo sozinhas, fazendo-me lembrar da célebre frase de Schopenhauer: "na solidão, encontro meu próprio mundo, onde posso ouvir a música da minha alma". Porém, às vezes a alma também sente falta de alguém para dançar.
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