Paulo Rosa

Amizade em Chico Buarque

Por Paulo Rosa Caps Porto,
Ambulatório Saúde Mental, Hospital Espírita, TeleMedicina PM Pelotas
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Durante a malfadada e funesta última ditadura militar no Brasil, 1964-1985, Chico Buarque precisou exilar-se, a bem de sua saúde, por um período na Itália, como ele relata em músicas e também em seu livro de contos, Anos de Chumbo, pela Companhia das Letras, 2021, 168 páginas. Nesse tempo de isolamento e desgosto, longe do País e de amigos, ele fez uma de suas mais belas músicas, 'Meu caro amigo', uma poesia sobre o que é sentir saudade de um amigo distante. Mas, não só isso. Ele também ostenta ali sua habilidade em driblar a truculência da censura daquele então, com letras cujo duplo, triplo, múltiplo sentido escapava à limitação tacanha vigente: "que a gente vai levando de teimoso e de pirraça / que a gente vai tomando e também sem a cachaça / ninguém segura esse rojão / meu caro amigo.../ aqui na terra tão jogando futebol / tem muito samba, muito choro e rock'n'roll / uns dias chove, noutros dias / bate sol… é pirueta pra cavar o ganha-pão / que a gente vai cavando só de birra, só de sarro / eu ando aflito pra fazer você ficar / a par de tudo que se passa...mas o correio andou arisco / se me permitem, vou tentar lhe remeter / notícias frescas nesse disco...a todo o pessoal, adeus".

Chico extravasa a saudade dos amigos também em outras músicas, tipo 'Tanto mar", e ainda nesse último livro de contos, com 'Para Clarice Lispector, com candura', pág. 101, onde relata as agruras de um titubeante estreante de letras, que pede a Lispector a leitura de 'um maço de poemas manuscritos', e passa a agonia da espera de resposta da escritora consagrada, e pior, quando ela, em pessoa, propõe que se encontrem concretamente...e daí parte para diálogos improváveis. Como bem diz no título, o conto é a expressão cândida de Chico em seu amor amistoso por Clarice.

Mas Chico Buarque soube, ultimamente, mostrar sua amizade para consigo mesmo, através de uma invejável coerência política: retardou a recepção de seu Prêmio Camões, a maior distinção literária em língua portuguesa, para que o recebesse em mãos de seu amigo democrata. A coerência de Chico trouxe-me a grata lembrança da inteireza política de nosso saudoso Aldyr Garcia Schlee, e sua posição inarredável de um caminho republicano, livre e igualitário.

Em seu discurso recente em Portugal, Chico deu ênfase à imagem de seu pai, que o aproximou da importância das letras para uma vida legítima, e não titubeou em apoiá-lo a desistir do curso de Arquitetura, já avançado, para dedicar-se à música. Somente um pai, amigo e iluminado, pode ter essa abertura para que o filho faça seu próprio caminho. E o filho não parou na música, fez teatro, com a inesquecível 'Ópera do malandro', de 1979, que tive a sorte de ver a estreia, no Rio, além de vários livros, inclusive um para crianças, 'Chapeuzinho Amarelo'.

Chico, não o conheço pessoalmente, mas será um amigo de seus amigos.

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