Opinião
Da long neck ao latão: o Brasil sendo Brasil
Por Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Às vezes, esqueço que estou no Brasil. Parece que o período em que estive nos Estados Unidos há quase uma década atrás deixou marcas profundas em minha forma de viver em sociedade. Refleti sobre isso no domingo do jogo entre Grêmio e Corinthians, na Arena, quando, ao voltar para casa com minha filha em meio a um toró de chuva, avistei um micro-ônibus do transporte coletivo de Porto Alegre parado no engarrafamento do alagado Humaitá. Enquanto tomava uma lata de cerveja que havia comprado para trocar uma nota de 50, ao ver o micro-ônibus parado, comentei com minha filha: "Vou terminar essa aqui e vamos".
O latão estava pela metade e, na minha cabeça, eu não poderia entrar no coletivo bebendo. Assim, tomei tudo num "golão" e fomos para o micro. Quando entramos, fomos recebidos por um co-piloto inusitado: um homem alto e jovem, todo encharcado, que segurava uma long neck de cerveja enquanto balançava de um lado para o outro.
- Vamos entrando, minha gente, que cabe mais um!
Ô, Brasil velho! E eu achando que não conseguiria entrar com meu latão! O sujeito estava na porta e ia ajudando o motorista a cobrar os passageiros. O coletivo estava lotado e, com a chuva, não saía do lugar. O co-piloto, volta e meia berrava:
- Vai demorar um pouco! Se alguém quiser uma cerveja, só me dar o dinheiro que busco ali!
Esse é o Brasilzão que conheci em quatro décadas de vida. Não tem erro. Vale tudo. Pensei no assunto e perguntei:
- Só tem long neck ou tem latão também?
Ele olhou para o motorista e berrou:
- Ô, motora, abre ai!
Ele abriu. O sujeito enfiou a cabeça para fora e berrou para um barrigudinho que estava a uns 200 metros vendendo cerveja em uma caixa de isopor:
- Ôooooooo amigo! Tem latão???
- Ãhmmmmm???? _ retrucou, com a mão no ouvido para escutar melhor.
- Tem latão???
- Tem!
- Quanto???
- Dez reais!
Comprei um, afinal, quem está na chuva é para se molhar. E, após uns 40 minutos parados, partimos, com o co-piloto orientando a rota para o motorista entre um gole de cerveja e outro. Às vezes o motorista perguntava: "dá para entrar ai?", e o co-piloto respondia: "vai, vai, vai!" e, assim, ele atravessou algumas ruelas na contramão...
Toda a história daria umas dez colunas, esse é apenas um trecho que me fez ter certeza de que, sim, eu estava no Brasil e, sim, não mudou muita coisa por aqui nas últimas décadas. Continuamos, como no restante da América, a ser a terra do vale-tudo. Pena que na literatura ainda sejamos tão conservadores. Mas aí já é tema para a coluna da próxima semana.
Hasta!
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