Artigo

Falta faz o Schlee

Por Paulo Rosa
Caps Porto, Ambulatório Saúde Mental, Telemedicina PM Pelotas, Hospital Espírita | [email protected]

Neste 15 de novembro de 2022 completam-se quatro anos da morte do escritor e professor Aldyr Garcia Schlee. A perda de um bom amigo de muitos amigos. Ele era carne e osso daquele velho ditado, cuja versão mais cosmopolita diz “tu abandonas o lugar em que nasceste, mas esse lugar não te abandona”. Schlee seguiu sendo um guri sabido da fronteira de Jaguarão-Río Blanco pela vida afora. Fez amigos e estudos profundos deste e do outro lado, lá no seu (nosso) amado Uruguai. Amava com igual paixão tanto a língua portuguesa quanto a castelhana, mas dedicava seu coração literário a essa mescla bonita, acolhedora e divertida que é o portunhol pampeano. Todos seus livros são escritos nesse idioma particular, esse idioleto dos pampas que possibilita uma visão de mundo - weltanschauung, diria o Alemão Schlee - muito própria. Nesse universo o que prevalece é a liberdade de bandear fronteiras como se fossem suas, fronteiras no sentido literal, assim como no metafórico. Um homem, um pensador, um escritor sem limites. Seu lugar era o Pampa e esse Pampa, o mundo.

Os que aqui por ora permanecemos, deste lado verde-amarelo da fronteira, mas sempre de olho no “outro lado”, adquirimos o (bom) hábito, tipo mate amargo, de sorver Schlee a diário e colocar seus escritos no mano a mano com outros grandes. Por motivos acadêmicos ando lendo, num certo trote curto, a obra do também alemão, Nietzsche. E não é que a cada três por quatro encontro afinidades! O primeiro alemão, de 1844, declarou em Humano, demasiado humano: “deves tornar-te senhor de ti mesmo, senhor também de tuas próprias virtudes. Antes elas eram teus senhores; mas devem ser apenas teus instrumentos junto com outros instrumentos... deve... ligá-los de novo teu segundo objetivo mais alto”. E no Zaratustra remata: “eu amo aquele que tem espírito livre e coração livre”. O segundo alemão, o “nosso”, de 1934, mostra seu coração livre ao propor, já na abertura de seu romance monumental Don frutos, o inusitado entre ele e leitor, onde juntos “dividíssemos na leitura a ação de escrever o livro: encontrássemos juntos os meios de... reconstituir as imagens prodigiosas...”.
Quer alguém de coração mais livre - e generoso - que um escritor que percebe que o livro se reescreve à medida que lê o leitor cada página, e que serão tantos livros quantos forem os leitores daquele livro particular, em um desdobramento infinito? Nessa percepção sutil de que cada página é recomposta no passo a passo do leitor, que avança, desbrava e cria junto com o escritor. Encontro aí uma afinidade absoluta entre Schlee e Nietzsche, mestres, ambos, no desenvolvimento das fragilidades do eu e na sua luta por encontrar um toque de liberdade, um porvir.

“Y aunque la vida murió, / Nos dexó harto consuelo / Su memoria”, epígrafe em Don frutos.

Schlee, um nietzscheano. Quem diria?

E agora me levas a Gal, Tchê

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Anterior

Alívio no bolso

Próximo

O ovo da serpente

Deixe seu comentário