Reconhecimento
A cultura sem esquecer da dor
Contra a vontade, milhares desembarcavam por aqui à época para trabalhar em regime escravo - cada charqueada possuía 80 escravos, de forma sazonal
No século 19 Pelotas se desenvolveu, tornando-se metrópole nacional e mundial principalmente por conta do ciclo das charqueadas às margens dos arroios Pelotas, Santa Bárbara e Moreira e do Canal São Gonçalo. A matéria-prima era o gado, proveniente da Campanha rio-grandense, e chegava a 400 mil o número de abates por ano. Após a produção do charque, um navio levava o produto a localidades europeias e voltava abastecido de mantimentos, livros, revistas, móveis e louças.
A riqueza, e esse reconhecimento ainda é recente por aqui, se deu à base de sangue e suor de negros africanos que, contra a vontade, desembarcavam por aqui à época para trabalhar em regime escravo - cada charqueada possuía 80 escravos, de forma sazonal, oriundos da África ou de outros estados que, em decadência, vendiam os trabalhadores a cidades mais ricas.
O professor Fábio Cerqueira destaca, nessa época, um importante momento na formação étnico-cultural do Rio Grande do Sul: a fuga de negros escravos que viriam a se encontrar com indígenas na região serrana do Estado. Ele destaca também, em Pelotas, a formação, na zona rural, de áreas de concentração de negros, algumas desenvolvendo a identidade de quilombolas. “Quando a gente pensa quilombo, pensa em Palmares, mas foi uma situação excepcional. Aqui era muito mais guerrilha. Não se estabilizavam em lugares, eram grupos muito pequenos e circulavam na Serra dos Tapes. Tem um morro chamado Quinongondo, cujo nome deita sobre uma raiz africana”, acrescenta, referindo-se o local onde Manuel Padeiro - ou Pedreiro -, líder quilombola pelotense do século 19, morreu.
A escravidão na cidade, em tese, teve fim em 1880, mas a influência africana se estende até os dias de hoje, o sangue virando samba, o suor virando dança, as lágrimas virando religião. Sem nunca, porém, esquecer o sofrimento pelo qual Pelotas se desenvolveu. O dançarino Daniel Amaro é atualmente um dos principais responsáveis por manter viva a chama negra no cotidiano pelotense. Segundo ele, há mãos que constantemente tentam apagá-la, daí a importância de não baixar a guarda. “Formamos a outra cultura da cidade, para além da arquitetura. A identidade negra fez com que, por muitos anos, por exemplo, tivéssemos um dos principais carnavais do país, algo que infelizmente nos dias atuais não se vê”, diz.
Além da festa popular, o traço africano é percebido na cultura de Pelotas também na música, cujas vertentes mais visíveis são o samba e o pagode, presentes tanto nos bares de esquina com cerveja gelada, três ou quatro instrumentos, quanto no profissionalismo da Sente o Clima, referência estadual do pagode, ou da Xavabanda, que balançará o Carnaval do Rio de Janeiro em 2018. Mais recentemente, a herança negra fez com que Pelotas criasse a cena hip hop tida como a mais talentosa do Estado, uma das principais do Brasil.
Dentro de todos os elementos que compõem o movimento: desde o DJ, com Vagner Borges, presidente da Associação Hip Hop de Pelo tas, até o break dance, quando tudo começou a partir de iniciativa de Mr. Pelé, chegando no grupo Trem do Sul, que ganhou o mundo sem nunca esquecer da origem no Navegantes.
No rap, o caldo engrossa ainda mais, relato próprio e fiel que é da vida negra nas periferias. É Pelotas referência no estilo musical desde os anos 1980, quando por aqui criaram rimas lendários grupos como o Calibre 12 Máfia. Nos anos 1990, o protagonismo ficou com a Banca CNR, cujo membro Guido CNR completa, em 2017, 20 anos de carreira - com disco a ser lançado em agosto. Nos anos 2000, o rap pelotense cresceu em qualidade de produção e propagação da mensagem: Zudizilla, que em 2015 lançou o álbum Faça a coisa certa, foi citado pelo rapper Emicida como um dos principais nomes da nova geração do movimento.
J Will, que em julho lançará Rima vivida, venceu concurso de batalhas de rima em Blumenau-SC e teve participação em quadro de programa de TV transmitido para todo o Rio Grande do Sul.
Amaro joga luz também à questão religiosa. Ele lembra do batuque, credo afro-brasileiro com raízes na Costa do Guiné, na Nigéria, além dos povos jêje, ijexá, oyó, kambina e nagô. Sua estruturação no solo gaúcho se deu entre 1833 e 1859 com os primeiros terreiros sendo fundados em Pelotas e no Rio Grande, na sequência migrando para Porto Alegre juntamente aos ex-escravos.
É importante ressaltar: já na época da escravidão, não era bem visto o culto aos orixás, ao que os negros escondiam as imagens para que, em momentos de maior segurança, pudessem adorá-los. Segundo Amaro, esse preconceito ainda existe nos dias de hoje, mas de forma mais hipócrita. “O pelotense tem orgulho de ir à missa todos os domingos, mas se esconde quando precisa ir no terreiro bater cabeça”, critica.
Sobre a recepção ao negro em Pelotas, Amaro vê avanços, mas apenas quando convém ao pelotense aceitar melhor outra etnia - o exemplo religioso é utilizado aqui por ele. “O samba é tido como interessante agora que está dentro do Mercado, local turístico”, diz, destacando as ações afirmativas, implementadas no Brasil a partir dos anos 2000, como a Lei de Cotas, como imprescindíveis para o mais importante dos pontos: fazer com que o negro aceite-se dentro da sociedade. “Tudo passa pelo acesso à educação e à cultura. Mais oportunidades dentro do mercado de trabalho e nas instituições de ensino”, finaliza.
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