Saúde
A dor da perda transformada em vida
Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos resgata o debate de um dos temas mais relevantes da medicina
Jô Folha -
Milhares de pessoas contraem todos os anos doenças cuja única alternativa de cura é através de transplantes de órgãos. A fila de espera, em agosto, chegava a 1.318 pessoas no Rio Grande do Sul. O número é grande, mas assusta quando comparado àquele de transplantes realizados: somente 208. Nesta quarta-feira (27), data em que é comemorado o Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos, Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (Cihdott) de cada hospital de Pelotas se unem para incentivar a população a reverter este cenário.
Se pensar na morte é algo que a maioria das pessoas evita, pensar no que será feito com seu corpo após, mais complicado ainda. Os brasileiros têm como vantagem o Sistema Único de Saúde (SUS), que cobre todas as despesas de um transplante. Doar, então, fica mais fácil - basta a família optar por dizer sim. O programa faz com que o Brasil possua o maior sistema público de transplantes no mundo. Em 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, mais de 90% dos transplantes realizados no Brasil foram financiados pelo SUS. Os transplantados possuem assistência integral e gratuita, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós-transplante.
A doação só pode ocorrer após a constatação de morte encefálica, que é a interrupção irreversível das funções cerebrais, ou seja, a morte propriamente dita. Rim, parte do fígado e medula óssea podem ser doados ainda em vida entre cônjuges ou parentes de até quarto grau com compatibilidade sanguínea ou, no caso de não familiares, mediante autorização judicial.
No Brasil, a doação após a morte só é habilitada pela família. Por isso, para ser doador não basta deixar o desejo escrito. As manifestações relativas à retirada “post mortem” de tecidos, órgãos e partes, antes especificadas na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação, perderam validade em 2001 com a lei federal 10.211. Cada cidadão deve, então, comunicar a família sobre o desejo de doar ou não. Ato de caridade e solidariedade com o próximo, a doação pode beneficiar pessoas com doenças cardíacas graves, no caso do coração; doentes de fibrose, enfisema ou por hipertensão pulmonar, para o pulmão; assim como os doadores de rim, que dão nova vida para pessoas com insuficiência renal crônica.
Rosane Otto Neitzel, 54, é uma dessas beneficiadas. Ela carrega no lado esquerdo do corpo o rim de outra pessoa. Oito meses após a cirurgia, a dona de casa conta viver uma nova vida. O transplante resolveu o que 17 anos de vários tratamentos, cirurgias e hemodiálises não deram conta. “Causava um ciclo vicioso de infecções. Passei por várias cirurgias e nunca conseguia limpar os rins. Morava mais dentro do hospital do que em casa”, relata. “Agora eu tô vivendo de novo. Agradeço todos os dias a essa família que me deu a vida”, emociona, relatando as várias vezes em que quase recebeu o transplante. “Me ligavam pedindo pra fazer jejum. Uma vez, não era compatível. Até que chegou meu dia.”
Para controlar uma possível rejeição, transplantados como Rosane usam medicamentos pelo resto da vida. Apesar disso, é importante ressaltar que o transplante pode prolongar a vida em muito tempo e em melhor qualidade. A respeito da resistência em autorizar a doação, Rosane é certeira: “Falta informação. As pessoas ainda não entendem como funciona. Os familiares que doaram podem ir pra casa consolados que aquele ente querido continua vivo em outras pessoas. Esse rim que me foi dado, estaria onde agora?”, questiona.
Em dezembro de 2016, 41.042 pessoas aguardavam por um transplante, sendo mais da metade (24.914) para rim. No mesmo ano o Brasil registrou o maior número de doadores efetivos da história: 2.983. O número representa uma taxa de 14,6 por milhão da população (pmp), 5% maior em comparação a 2015. Para que os dados continuem crescendo, diminuir a taxa de recusa das famílias brasileiras em relação à doação de órgãos é o caminho. Em 2016, chegava a 57%, menor do que a registrada, inclusive, em 2014, quando a aceitação familiar foi de 58%.
Em Pelotas, a ONG Adote (Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos) é uma das referências no incentivo à doação. O presidente, Francisco Neto Assis, 71, foi motivado pela perda de um filho por um transplante. “É uma situação drástica na vida de uma pessoa. (O trabalho na ONG) substitui a saudade que eu sinto dele”, conta. Na última segunda-feira, após 19 anos engajado pela causa, recebeu homenagem do governo do Estado, ao lado de outras Ongs, médicos e profissionais de destaque na área.
Fundada por Francisco há 19 anos, devido à morte de um filho por falta de transplante, a Adote se dedica à divulgação de informações sobre o processo de doação-transplante. Após quase duas décadas, Francisco afirma: as famílias hoje estão mais propensas a aceitar a doação. Antes, a média brasileira era de quatro doadores a cada milhão. Hoje, 14. Porém, ainda é preciso melhorar. “É fundamental que as Cihdotts sejam recompensadas. Falta esclarecimento da população? Sim. Mas acredito que, muitas vezes, é a falta de uma boa entrevista”, diz, referindo-se ao momento em que os médicos perguntam à família se deseja doar.
O Hospital Universitário São Francisco de Paula (HUSFP) é o único que realiza transplantes na cidade: somente o renal. Todos os hospitais da rede podem captar órgãos. O Hospital-Escola da Universidade Federal de Pelotas conta com banco de olhos, iniciativa da própria Adote. Do início do ano até agora, somente três órgãos foram captados no HUSFP; tecidos (córneas), 24. O número ultrapassa o registrado em todo o ano passado, que teve somente seis órgãos e oito córneas. A Cihdott da casa conta com cinco pessoas, entre médico responsável, enfermeiras, pedagoga e assistente administrativa.
Luciano Teixeira, médico coordenador da equipe, conta sobre o último final de semana, em que a equipe recebeu o sim de uma família. “Aconteceu algo muito raro. Os dois pulmões foram utilizados, cada um em pacientes diferentes”. Os transplantes mais comuns são de rins e córneas. Ao total, sete pessoas foram beneficiadas com a doação de somente uma pessoa.
Programação do Dia Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos
Quarta-feira, das 8h às 12h e das 14h às 17h - Concentração no chafariz Três Meninas, calçadão de Pelotas. Atividade de abordagem para conscientização, utilizando panfletos e material informativo.
Sábado - 14h - Conscientização no largo Edmar Fetter, em frente ao Mercado Central.
Mitos
Morte encefálica x coma:
Paciente em coma não é doador de órgãos, pois seu estado ainda pode ser reversível. A captação só é feita após a realização de exames que atestem a morte encefálica, que é a parada irreversível de atividades cerebrais, que acarreta na parada dos órgãos horas após, ou seja, a morte propriamente dita.
Integridade do corpo após doações:
O paciente vai para o bloco cirúrgico e é tratado com a mesma estrutura de um paciente vivo, com anestesia e suturação. A integridade do corpo é mantida para os ritos fúnebres através de próteses, processo que é explicado em detalhe para os familiares que aceitarem a doação. No transplante de córnea, por exemplo o profissional coloca uma prótese redonda no globo ocular e usa uma cola apropriada para o(a) paciente permanecer com o mesmo aspecto.
Saúde do doador:
O diagnóstico do que levou à morte e o tipo sanguíneo são aspectos estudados para encontrar um receptor compatível. Pessoas com Aids e com doenças infecciosas ativas não podem doar. Fumantes não podem doar pulmão.
A família paga?
Todo o processo é feito gratuitamente pelo SUS.
Caminho do transplante
1 - Precisa ser diagnosticada a morte encefálica.
2 - Equipe do hospital entra em contato com a família, que opta por fazer a doação ou não.
3 - A família que aceita doar os órgãos do paciente passa por toda uma documentação. Um familiar de primeiro grau autoriza e mais duas testemunhas assinam.
4 - Todos os hospitais da rede realizam a captação de órgãos, mas somente o Hospital Universitário São Francisco de Paula realiza o transplante (de rins).
5 - São feitos exames como os de doação de sangue, incluindo HIV, hepatites B e C, HTLV-I/II, sífilis, doença de Chagas, citomegalovirus, toxoplasmose, entre outros. Para isso, o órgão é levado até a Central de Transplantes, em Porto Alegre.
6 - Entre quatro e seis horas depois, a cirurgia de retirada dos órgãos e/ou tecidos é iniciada. Após a cirurgia, a equipe médica recompõe o corpo do doador, que terá pontos no local operado.
7 - Um número X de possíveis receptores da fila de espera é contatado e fica em jejum, esperando a confirmação de compatibilidade.
8 - Se todos os órgãos e tecidos forem aproveitados, uma pessoa pode salvar a vida de 20 a 25 pessoas. Córneas, coração, fígado, pulmão, rim, pâncreas, ossos, vasos sanguíneos, pele, tendões e cartilagem são aproveitados.
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