Lamentável

Escravidão contemporânea é uma realidade próxima

Caso em Bento Gonçalves acende alerta para crescente de resgates no RS; Zona Sul teve duas situações ano passado

Foto: Divulgação - PRF - No caso de Bento Gonçalves, pessoas viviam em situação degradante

Por Lucas Kurz
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Na semana passada, 207 trabalhadores, com idades entre 18 e 57 anos, em situação análoga à escravidão foram resgatados em operação no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. É a maior intervenção desse tipo na história do Estado. A situação gera um alerta: um tema que em pleno século XXI pode soar distante, geográfica e temporalmente, pode estar mais perto do que se imagina. Na Zona Sul, por exemplo, houve dois casos registrados no ano passado: em Jaguarão e Santa Vitória do Palmar. Em cada um deles, duas pessoas eram mantidas em situações degradantes.

Participando das ações em Bento Gonçalves, Lucas Santos Fernandes, procurador do Trabalho em Pelotas e coordenador no RS da Conaete, núcleo do Ministério Público do Trabalho (MPT) voltado ao combate do trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, conversou com o DP e explicou que, em Pelotas, até o momento não houve casos, mas que há áreas de risco, como por exemplo produção de tabaco, onde existem ações preventivas e trabalho doméstico. "O trabalho escravo moderno é ligado a condições degradantes", explica, citando que alojamento, alimentação, jornadas exaustivas, vigilância armada e sistema de endividamento _ como o caso em Bento Gonçalves _ fazem parte de indicadores dessa situação.

Ele alerta que muitas instituições acabam se envolvendo nesse combate e resgate. "O Rio Grande do Sul vem tomando destaque negativo nacionalmente", analisa, dizendo que, no ano passado, foi um dos estados com mais casos. Os dados do MPT mostram que em 2021 foram 76 resgates, ano passado 156 e, apenas neste caso da Serra em 2023, já são 207 _ antes, havia tido apenas um. Uma clara crescente. Segundo Santos Fernandes, a maioria das ocorrências envolve vítimas com baixa instrução formal e em situação de vulnerabilidade social, questão agravada com a crise econômica atual. Normalmente vítimas são de outros estados (em Bento Gonçalves, por exemplo, a maioria era da Bahia), que acreditaram em propostas de uma vida melhor.

Já o auditor do trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Márcio Cantos, cita que os monitoramentos dependem de indícios, que costumam surgir a partir de denúncias. Ele diz que o cenário das denúncias, em maior demanda, diz respeito ao trabalho rural. "Para a gente, disparado tem sido rural. De uma forma geral no País e, para Pelotas, não nos chegou até hoje nenhuma denúncia de trabalho doméstico, ou mesmo trabalho urbano", aponta.

Como ficar de olho?
Santos Fernandes ressalta que é dever de toda a sociedade prestar atenção em situações como as descritas acima. Embora o agronegócio seja bastante citado, especialmente após o caso das vinícolas, a escravidão moderna também pode ser urbana, tendo tido registros, por exemplo, na construção civil, e doméstico, como casos de empregados. Ele diz que, nos casos urbanos, a vítima consegue pedir socorro mais facilmente, não perdurando tanto tempo quanto o rural, que, pelo isolamento, pode demorar mais a ter socorro. "Sempre que ver que algum trabalhador reclamar da falta de alimentação, que está morando, por exemplo, em algum local que é impróprio para a vivência do ser humano, não tem acesso à água potável, que leve às autoridades para que seja feita a apuração devida", alerta.

O procurador ressalta também a importância de fazer as comunicações de maneira mais detalhada possível. Na região, em alguns casos, houve denúncias sem configurar trabalho escravo, embora outras irregularidades e precariedade tivessem sido constatadas. "Aí é feito outro encaminhamento trabalhista", explica.

Já o auditor Márcio Cantos diz que, embora haja a percepção de que é algo distante, na região Sul do País os casos costumam ser em locais até próximos de estradas, por exemplo. Por isso, ele diz que é preciso observar quebrando, por exemplo, o estereótipo do trabalhador escravizado sendo alguém preso a grilhões. Na escravidão contemporânea ele diz que as condições degradantes, que afrontam a dignidade humana, devem ser observadas.

Desconfiar sempre
Santos Fernandes diz que é importante desconfiar de propostas de emprego que envolvam, por exemplo, pagamento de valores pela vaga, o que é ilegal. O pagamento de transporte e assinatura de contrato normalmente também são feitos antes da saída da cidade de origem.

Monitoramento rural
A Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande do Sul (Fetar-Sul) vem monitorando casos na região _ organizando, inclusive, uma denúncia para encaminhar em breve, segundo seu coordenador, João Cézar Larossa, que também é vereador pelo PT em Arroio Grande. Ele diz que a maioria dos casos na região são de moradores no norte do RS e outros estados vindos para trabalhar nas safras.

Como denunciar
> Site do Ministério do Trabalho
> Telefone Disque 100

Fetar RS
Telefone: (53) 3281-1731
Endereço: Voluntários da Pátria, 1.297 - Pelotas

Ministério Público do Trabalho
Telefone:
(53) 3260-2950

Ministério do Trabalho e Previdência
Telefone: (53) 3229-1121

O relato de quem viveu de perto o resgate
Ex-repórter do Diário Popular, o jornalista Leon Sanguiné, atualmente no grupo RSCOM, acompanhou a ação e relatou a situação vivida pelos trabalhadores resgatados no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves.

"Chegamos por volta das 19h. Eles eram muitos, majoritariamente negros, e estavam sentados na rua. O número aumentava à medida que a noite avançava e os outros voltavam do trabalho. Tossiam muito.

Me aproximei aos poucos e percebi abertura com um deles. No relato, agressões físicas, xingamentos, falta de comida, jornadas de 20 horas de trabalho. Dois filhos e a necessidade urgente de dinheiro.

Lá dentro, falta de manutenção, muita sujeira, baixíssima iluminação. Quartos que mais pareciam armários. Poucos com janela _ e muitos, dos mais estruturados, vazios. Impossível permanecer por mais de dois minutos, na visão dos próprios policiais.

Encontrei os trabalhadores já alojados no Ginásio Municipal. Um ligava para a mãe, ela chorava muito e implorava por seu retorno. Outro fazia contas para saber se conseguiria o material escolar dos filhos, caso voltasse sem receber nada.

Após o acordo, acompanhamos o embarque de volta para casa. Três dias na estrada. Alegria, alívio, gratidão. Encontrei alguns dos que conversei, os abracei e desejei que tudo fosse diferente dali pra frente. Difícil saber. Para quem os contratou temo que não seja."


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