Opinião

A arte de dizer a verdade

Por Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Vocês já se depararam com aquela situação em que o interlocutor (geralmente um parente ou amigo) te mostra algo cheio de empolgação e você não sente absolutamente nada? Pode ser a "paisagem" perto da casa dele, um carro novo ou a namorada mais recente. A criatura está com os olhos arregalados, babando de excitação, claramente observando a sua reação, até que ela não se aguenta e te pergunta: "e aí, não é uma beleza?". Você sorri amarelo e concorda, mesmo sem concordar. "Com um negócio desses, eu não preciso de mais nada na vida!", às vezes o outro diz, enquanto você pensa: "que bosta", tentando se livrar da situação. Nessas horas, e em outras mais, eu gostaria de ser o escritor argelino radicado na França, Albert Camus (1913-1960).

Reza a lenda que nos anos 1950, quando já era um escritor consagrado, Camus visitou o Brasil e, durante a sua passagem por Porto Alegre, levaram-no para ver o pôr-do-sol do Guaíba. O professor Antônio Carlos Resende certa vez descreveu a situação: "lhe impingiram assistir ao famoso pôr-do-sol do Guaíba, que nada tinha de famoso ou extraordinário, igual aos que já vira em diferentes lugares tantas vezes ao logo da vida, nada especial". Fico imaginando a cara de frustração dos gaúchos ao seu redor ao perceber a indiferença do argelino diante daquela imagem que eles julgavam ser uma das mais belas do planeta. Além disso, Camus acrescentou: achou Porto Alegre horrível. Curto e grosso, mas sincero. Não ouso discordar.

Há verdades que não falamos pela política da boa vizinhança. Mas, às vezes, da vontade de mandar tudo às favas. Dependendo do dia, tenho vontade de ser Camus por um dia. Ou um de seus personagens. No livro O estrangeiro, publicado originalmente em 1949, o personagem Mersault, retrata bem essa personalidade. Não é a toa que ele não é um estrangeiro geograficamente falando, mas sim, espiritualmente, pois se sente completamente deslocado no mundo. E, com isso, acaba não disfarçando nenhum sentimento, inclusive, a indiferença com a morte da própria mãe. O romance começa com a frase: "Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem". Em seguida, ele cita que poderia pedir folga no trabalho, afinal, "com uma desculpa destas, ele [o chefe] não podia recusar". Isso apenas na primeira página!

O tom segue pela narrativa inteira: um niilismo misturado com um pragmatismo cético e ateísta. O que quase sempre frustra os interlocutores, inclusive a namorada. Em certa cena, ela tenta criar um clima romântico com Mersault e eis o resultado: "À noite, Marie veio buscar-me e perguntou se eu queria casar-me com ela. Disse que tanto fazia, mas que se ela queria, poderíamos nos casar" (p.48). É óbvio que ela ficou possessa com a resposta. Ou seja, às vezes, é bom não ser tão sincero - principalmente quando o assunto é relacionamento amoroso.

Mas Camus, como diversos de seus personagens, não se importava muito com a reação dos outros. Dia desses vi o filme Albert Camus, de 2010, que tem na íntegra no Youtube. Acabei me identificando ainda mais com ele, principalmente pela história de seu casamento. Mas aí já história para outro dia.

Um bom final de semana a todos.

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