Artigo

A morte da rainha louca

Por Sérgio Cruz Lima

Presidente da Bibliotheca Pública Pelotense - [email protected]


O Rio de Janeiro, cidade na qual o sol é imperador, amanhece em tons funéreos. Tudo é bruma. O cinza impera. No ar há um estranho langor. Os sinos tangem em dobrado de dor. Veludos negros tombam das varandas senhoriais. No Paço, um vaivém de cortesãos que sobem e descem as escadarias, todos cobertos de preto, em grande luto. Um fato grave ocorrera: a morte de dona Maria I, a Louca, mãe de dom João VI e avó do príncipe dom Pedro, futuro imperador do Brasil. Data: 20 de março de 1816.
Transformada em câmara funerária, a Sala dos Despachos alberga o cadáver daquela que fora a rainha de Portugal. É uma senhora de 82 anos. Mãos em cruz, longas e maceradas pela ação temporal, um sorriso flutua na boca gelada. A morte jaz paramentada em grande gala. No peito da velha senhora reluzem a Grã-Cruz de São Tiago, a Ordem de Cristo e a banda encarnada da Ordem de Avis. O manto real de veludo carmesim, forrado de seda branca e borrifado de estrelas de ouro, envolve-lhe o busto. Em exposição, o corpo recebe as homenagens da corte.
Pela manhã, dona Carlota Joaquina, acolitada das filhas, rende homenagem à sogra. A rainha morta, em vida, detestava a nora. Dona Carlota Joaquina, por seu turno, odiava a sogra. Não se toleravam. Nesse dia, por mera imposição da etiqueta, dona Carlota penetra na câmara ardente, beija a mão da morta, vira-lhe as costas e sai sem derramar lágrimas. Encerra-se em seus aposentos e não mais retorna à câmara. Nem sequer desce para acompanhar o esquife até o coche.
Agora são 15 horas. Os corredores palacianos estão lotados de gente ricamente ataviada. Todos aguardam dom João VI, agora rei de Portugal. De luto fechado, olhos marejados, cabelos em desordem, dom João surge no salão mortuário. Acompanham-no os filhos dom Pedro e dom Miguel, mais o Conde de Parati e o Visconde de Magé, validos reais e amigos íntimos. Ambos choram muito. Na câmara ardente, de pé, vestidos lantejoulados de vidrilhos negros, a Viscondessa do Real Agrado, que é camareira-mor, e dona Margarida de Castello Branco, que é dona da câmara, velam o corpo real. Sinceramente ferido, lágrimas a saltarem-lhe dos olhos aquele homem gordo, bochechudo, abraça desvairadamente o cadáver da mãe. Beija-o. Beija-o repetidamente, aos soluços, em grande desespero. Mediante um beijo demorado, os netos debruçam-se sobre o caixão mortuário. Despedem-se da avó. O Marquês de Aguiar, ministro das três pastas, suplica ao rei que se recolha aos seus aposentos. Dom João, que chora muito, deixa a câmara mortuária. Uma angústia rasga-lhe a alma: é a única dor sincera.
Dias após, findo o luto da corte, a aclamação de dom João VI é um deslumbramento. Nunca o Brasil vira um festejo como aquele. E não houve poupança. Houve gastança. E foi um gastar profuso, um cobrir de luxos desmedidos aquele Rio de 1816. Debaixo de aplausos, sob o ar de glória e festa, lá vai o novo rei a caminho da Real Capela. El-Rei ajoelha-se. A corte acompanha-o. Sua Majestade beija a relíquia do Santo-Lenho. Levanta-se. Majestosamente, senta-se no trono real. No coro, rompe a música de Marcos Portugal. Tem início o Te Deum. Dom João é agora oficialmente o novo rei português.

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