Amizade em Kierkegaard

Sören Kierkegaard, 1813-1855, em seus fugazes quarenta e dois anos de existência foi generoso, logo, amigo. Especialmente de si. “Minha vida não será, apesar de tudo, mais do que uma existência poética”, disse o dinamarquês. “Essa afirmação revela...seu heroísmo, sua honestidade e sua tragédia”, segue György Lukács, “o heroísmo residiu em ter desejado criar formas a partir da vida; sua probidade, em ter seguido até o fim o caminho escolhido; e sua tragédia, em ter desejado viver aquilo que jamais poderia ser vivido”. É nessa toada que Kierkegaard afirma que persegue uma “verdade que seja verdadeira para mim”, consolidando o terreno de seu existir poético, ao ser incondicional amigo de si, na busca implacável por sua verdade individual.
Ao completar 25 anos, o filósofo enfrenta a morte do pai. Esta perda, de um pai que lhe teria resultado demasiadamente rigoroso, exigindo-lhe estudos em latim e grego, e práticas estritas no modo de expressar-se, coincidiu com o início de um período de vida bastante desregrado. O filósofo, ao que parece, pensara aí libertar-se do pai, abrindo-se a viver gastos elevados em frivolidades, dedicando-se aos prazeres mundanos. Durou pouco o período. Logo retorna aos estudos universitários, voltados, então, a tornar-se pastor. Um ano antes ficara noivo da jovem de 17 anos Regine Olsen, mas logo interrompeu o noivado por, presumivelmente, priorizar seu projeto filosófico e religioso, que entendia incompatível com vida compartilhada.
“A vida subjetiva, na própria medida em que é vivida, não pode jamais ser objeto de um saber; ela escapa, em princípio, ao conhecimento...Essa interioridade que pretende afirmar-se contra toda a filosofia, na sua estreiteza e profundidade infinita, essa subjetividade reencontrada para além da linguagem, como a aventura pessoal de cada um em face dos outros e de Deus, eis o que Kierkegaard chamou de existência”. Assim referiu-se Sartre sobre o dinamarquês, sintetizando na expressão “filosofia da existência”, que se contrapunha a todos os sistemas racionalistas da época, em especial o de Hegel.
Meus amigos, especialmente os de tendência aziaga, dirão que estou sonhando, que Kierkegaard nunca se referiu à amizade. De fato, até agora jamais encontrei qualquer referência explícita. Entretanto, tomo como amistosa, em especial para consigo, o modo como encaminhou sua busca pessoal - intransigente - em percorrer caminhos por si mesmo demarcados, ainda que ao preço de afastar-se da única noiva de que se tem notícia, bem como de amigos que não o buscavam, face suas rarezas.
Em sua autobiografia, É preciso duvidar de tudo, o dinamarquês refere que “minha vida foi produzir” e “sou reflexão do começo ao fim”, mostrando que, ao ser amigo de si, viveu, não apenas existiu. Usou muitos pseudônimos, qual, posteriormente, e em maior número, Fernando Pessoa. Coisa de sábios solitários, talvez.

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