Artigo
Drummond: amizade à crua verdade
por Paulo Rosa
Ambulatório Saúde Mental, Hospital Espírita, TeleMedicina PM Pelotas
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Nem filósofos conseguem aproximar-se tanto da verdade quanto poetas. Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) radicaliza o conceito em obra póstuma, em prosa, usando aforismos, O avesso das coisas (1987), editada por seu neto, o artista plástico Pedro Graña Drummond. Na abertura, o velho poeta, nascido há 120 anos, informa que “andei reunindo pedacinhos de papel onde estas anotações vadias – [faça-me o favor: ‘anotações vadias’. O maestro arrasando!] – foram feitas e ofereço-as ao leitor, sem que pretenda convencê-lo do que penso nem convidá-lo a repensar suas ideias. São palavras que, de modo canhestro, aspiram a enveredar pelo avesso das coisas, nem sempre perceptível, mas às vezes curioso ou surpreendente”.
Nessa toada, a modo de dicionário, ele vai percorrendo temas. Quando chega em “democracia”, por exemplo, o homem da “pedra no caminho” se esbalda: “Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder”. “Por ser difícil permanecer fiel à democracia por muito tempo, os mandatos eleitorais não devem ir além de quatro anos.”. “A democracia é temperada pelo dinheiro e garantida pelas armas até certo ponto.” Um Drummond devastador. É trágico-irônico ao mostrar-nos que na democracia, a menos pior forma de governar, nós, o zé-povinho, temos, pelo menos, a sensação de estarmos – diga-se claramente – não no poder, mas “representados” no poder. Na real, nunca estaremos no poder. Certamente temos consciência da delegação de papéis, que vamos outorgando a nossos “representantes”, cujas ações teatrais, opa, digo, atividades parlamentares, deveriam expressar, naquele palco, as atitudes que devemos ter ao convivermos socialmente e nos pautarmos por algo razoavelmente igualitário, medianamente justo e humanamente em convívio. Em resumo, precisamos suportar, de modo obstinado, estarmos expostos às próprias fragilidades e, como se tal não bastasse, àquelas dos demais. Daí que é quase um milagre que a coisa não seja ainda pior, mais violenta e mais mesquinha.
Drummond, prudente, recomenda melhor não espicharmos os mandatos deles para além de quatro anos. Difícil a qualquer um nos mantermos fieis à democracia. Em alguns tipos, fácil constatar, vê-se quão namoradores de ditaduras são e, pasme-se, há quem aplauda a estupidez. É que uma pesada parcela deste povo brasil imagina, e não apenas isso, busca mesmo ser liderado por quem faça o papel, no estrito sentido teatral, de um “forte”, ainda que, na verdade, não passe de um boçal qualquer.
Em verbete correlato, o poeta conjectura: “A falha da república é suprimir a corte mantendo os cortesãos”, no que parece tapado de razão, pois a turma que “anima” o poder, com raras exceções, quer sua lasca da corte e, coerente, age em consonância: são grupos de bajuladores, servis, lambe-botas, aduladores. Nada espanhóis. Se sinceros, diriam “si hay gobierno, soy a favor”.
Pese a isso, ainda há democratas.
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