Celina Brod
Entre o hábito, o mundo novo e as ditaduras
Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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A coluna de hoje seria o meu ponto final em um susto que já passou. Eu iria contar para vocês sobre o meu pequeno drama em Nova Iorque. Eu estava lá para participar de uma conferência em homenagem a um professor que dedicou sua trajetória acadêmica comentando filósofos como David Hume e Espinosa. Eu iria contar que deixei meu celular cair no chão, perdendo todos os meus vínculos virtuais às 20h. Sem Google Maps, sem WhatsApp, sem Uber, sem aplicativo do banco ou horas. Me senti pelada e isolada na West 4th street.
Em segundos, fui de uma mulher segura e feliz para uma formiga perdida e assustada. Como minha família saberá onde estou? Qual metrô devo pegar para voltar ao Queens? Como vou acessar minha conta do banco? Para qual lado eu vou? As lojas fechando, sola do pé doendo, dólares contados para refeições duvidosas e a cabeça repleta de abstrações depois de um dia de Filosofia. Esse texto seria sobre isso. Também seria sobre o conto de Forster, escrito em 1909, A máquina parou, um conto sobre uma sociedade que aderiu ao estímulo virtual incessante, com indivíduos isolados em cubículos e supridos por informações constantes. As máquinas eram extensões da existência até que um dia elas pararam de funcionar, todos sucumbiram.
Pensei sobre a relação entre progresso tecnológico e os humanos; quanto mais avançamos, mais distantes ficamos dos velhos radares e instintos. Nos habituamos com a internet e isso já nos modificou o bastante para surtarmos quando ficamos sem. O tempo passa de outro jeito e a distância entre as pessoas já não é a mesma. Se antes esperávamos um telefonema para ter notícias de alguém, hoje bastar abrir o WhatsApp a qualquer momento. Se as palavras de um político eram pinceladas e lidas uma única vez, no jornal do dia, hoje são reproduzidas em vídeos curtos e comentadas até exaustão. Está mais difícil para lideranças sustentarem narrativas aos olhos do senso comum, porém mais fácil de construírem realidades paralelas para suas bolhas. É aqui que essa coluna muda de assunto.
Desculpem, me sinto repetitiva. Talvez a repetição não seja culpa minha, parece ser os fatos que persistem. Não temos lideranças responsáveis com aquilo que dizem, o qual aumenta nossos abismos cognitivos. Lula chamou de narrativa o que acontece na Venezuela. Abraçando Maduro, disse aos risos: "quanto tempo vocês ficaram pensando que este homem era mau?". Ele também disse "nossos adversários terão que pedir desculpas". Quem são os adversários? Precisamos sim de uma relação diplomática com a Venezuela, mas para tal não precisamos negar os fatos. Não existe negacionismo do bem, muito menos ditadura. Estou quase no fim do texto e não quero gastar uma linha explicando porque é verdade que a Venezuela rompeu o contrato chamado democracia. Há dados, relatórios, fugitivos e mortes que comprovam. Não é preconceito ou narrativa.
Lula fala em integração, mas aqui e ali sua alma ideológica escapa pela língua e ele revela política que relativiza a verdade quando beneficia bandeiras amigas. Como podemos forçar um líder a manter equilíbrio entre seu poder e juízos democráticos? Com críticas, preferencialmente vindas dos seus apoiadores mais fiéis. O problema é que estes, até ontem hipersensíveis com cada absurdo e negacionismo do bolsonarismo, calam-se diante da irresponsabilidade do seu líder. "Foi para isso mesmo que fiz o L", dizem. Isso gera um encapsulamento social que maquia a forma como os outros, fora do círculo mais afetivo, realmente enxergam o que é feito e dito por aquele líder. O que surge disso? Reação de pessoas que amanhã também irão justificar as narrativas do líder escolhido. Eu não quero estar escrevendo o mesmo em 2026. Mas, como David Hume diz, nossa mente tende a esperar efeitos semelhantes de causas semelhantes. É o que chamamos de hábito, uma das forças mais difíceis de se mudar. O mesmo pode-se dizer das paixões políticas.
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