Marcelo Oxley
Expressiva vitória
Por Marcelo Oxley
Jornalista
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Há 21 anos, a mesma rotina: café da manhã na padaria que, hoje, nada tem a ver com o trajeto do meu trabalho, mas que adoro alimentar essa tradição. Recordo-me, com carinho e admiração, o percurso e tudo que já vivi nesse período de estrada.
Numa dessas histórias, uma passagem triste e delicada: o número de dependentes do crack que cresceu assustadoramente naquela região. Além do mais, os novos rostos que integram o grupo daqueles pobres viciados, sem quaisquer perspectivas de vida.
Quase sempre, quando o tempo de espera permite, costumo conversar com aquelas pessoas e confesso-lhes que ouvir suas histórias de vida é uma experiência que nenhuma faculdade poderia ter me ensinado. Márcio (nome fictício), 25 anos, deixou escapar que é pai de duas filhas pequeninas e que tinha vontade de sair daquela vida perigosa. A nossa afinidade, construída com o passar do tempo, me deixava na expectativa que pudesse mudar de planos.
Certo dia lhe convidei para conhecer uma clínica de reabilitação. Estava preparado para qualquer resposta, inclusive a que me fora dada: "ainda não é o momento, Alemão, estou bem aqui". Porém, sabendo um pouco de sua vivência, lhe disse que suas filhas poderiam estar precisando dele e que os segundos longe delas não voltariam mais. Foi exatamente nesse momento, inesperado pelo andar da conversa, que recebi uma resposta com olhar fixo, desconfiado: "tá, vou pensar melhor".
Os meses se passaram e as desculpas do rapaz, de não querer o tratamento, não me afastaram das tentativas. Conversava com ele todos os dias e sempre que o portão da padaria abria, lhe perguntava: "vou te buscar amanhã para a clínica, ok?". A resposta negativa vinha sempre com um sorrisinho no canto da boca.
O rigoroso inverno de 2022, por vezes, fazia com que esperasse o estabelecimento abrir de dentro do carro. O celular, sempre meu parceiro, fez com que não visse a aproximação de Márcio, que batia desesperadamente em minha janela: "Marcelo, posso falar com o senhor?". Respondi: "sim, mas vamos deixar o 'senhor' para lá". Com semblante apreensivo ele me disse em voz alta: "está na hora, quero ir embora daqui". Prontamente entrei em contato com a responsável pela clínica na expectativa que houvesse uma vaga. Para a felicidade, o pai das meninas ingressou no mesmo dia, está lá até hoje e, o mais importante, "limpo". Me comprometi em ajudá-lo, dentro das minhas condições, e assim tem sido. A alegria em saber que não mais o encontrarei lá é um alento aos que ainda estão em situação desesperadora.
Márcio e eu seguidamente trocamos mensagens de celular e compreendo que o seu retorno às ruas deve demorar. O mais interessante de tudo é que me diz estar forte, mas que seus amigos precisam dele e de suas orações.
Existem diversas formas de guerras, lutas e batalhas. Porém, enfrentar e desafiar o vício é uma questão de coragem. Você não tem mais nada a perder e precisa alimentar o que lhe destrói, somente isso. Essa é a sua meta diária, seus passos e objetivos. Nada mais lhe importa e sua satisfação é ficar refém dos efeitos da droga. Você já está abandonado por todos e não é hora de achar culpados, os familiares também sofrem.
Fico feliz em poder ter ajudado. Talvez por ser pai, tentei me colocar no seu lugar e sentir a ausência dos meus filhos, da minha esposa. Minhas palavras, de alguma maneira, lhe fizeram enxergar que há uma saída. Tenho plena convicção que se retornasse cinco minutos depois para buscá-lo, já não o encontraria mais lá, o teria perdido, mais uma vez, para o vício e tudo que é capaz. Foi na hora certa e agimos da melhor maneira possível.
Obtivemos uma vitória: Márcio, que poderá estar mais próximo do convívio de sua família, e eu, que sempre lembrarei que algo de bom aconteceu naquela esquina. Tenho certeza que ele reza por mim, assim como se faz presente em minhas orações.
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