Eduardo Ritter
Maifrendi, Chico Boca Mole e os gringos
Eduardo Ritter
Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Um dos melhores livros que já li, sem sombra de dúvidas, é Abusado (2003), de Caco Barcellos. Para os alunos de Jornalismo, costumo dizer que é, inclusive, melhor do que o Rota 66 - outro baita livro. Esses dias, dando uma relida em certos trechos da narrativa, deparei-me com alguns personagens cômicos e inusitados. Para contextualizar, no livro Caco apresenta a biografia do traficante Marcinho VP, que ganha o nome fictício de Juliano VP, e das guerras que envolviam a tomada do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro da virada do século 20 para o 21. Só por curiosidade, para tudo Marcinho dizia: "Viado P***, Viado P***, Viado P***…". Daí o VP no nome.
Nessa espiada que dei novamente no Abusado, que li há uns dez anos, chamou-me a atenção a relação dos traficantes com os meus colegas de profissão: os jornalistas. Em determinado trecho, quando há uma guerra entre os traficantes Cabeludo e Zaca, o pessoal do morro logo descobriu que havia um jornalista inglês e o apelidaram de Maifrendi. Numa dessas, Cabeludo pede para o seu "assessor de imprensa", Chico Boca Mole, chamar o Maifrendi para uma entrevista exclusiva e vejam só no que deu:
"_ Aí, Maifrendi, o chefe quer mandá uma sinistra pros gringos _ disse Chico Boca Mole ao repórter inglês.
Cabeludo afastou-se meia hora da guerra para dar entrevista. E o repórter, que falava apenas algumas palavras em português, perdeu horas tentando traduzir as gírias e palavrões, com a ajuda do "assessor" Chico Boca Mole. Eram muitas as dúvidas em cada frase:
- Caga Sangue é Vacilão? What means? Que significa? _ perguntou o repórter.
- Vacilão ou bundão, ou mané, ou otário, o que tem que morrê! _ respondeu Chico Boca Mole.
- Oh, yes. The one who must die. Tem que morrer! And caga? And sangue?
- É o nome do cara, Maifrendi.
- Oh yes, the guy.
- Isso aí, viado, c*zão.
- E o que significa 'paulista deu uns tecos'?
- Aí tu já está querendo demais. Vai estudar, Maifrendi."
Vejam vocês! Os traficantes tinham até assessor de imprensa! Aliás, uma das dificuldades dos jornalistas quando iam gravar com Chico Boca Mole era fazê-lo gravar alguns segundos sem dizer palavrões, pois ele chegava para os jornalistas e dizia: "Manda aí na manchete: Zaca é um chifrudo arrombado!".
Os repórteres tinham que implorar para que ele gravasse pelo menos algumas palavras no linguajar comum. "Tá bem, nova manchete: retira o chifrudo arrombado. Coloca aí: Zaca, tu vai morrê, mané!"
A obra de Caco é a prova que, inúmeras vezes, a ficção não consegue chegar aos pés da realidade quando o assunto é hilaridade e a espontaneidade humana. Um bom final de semana a todos.
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