Paulo Rosa

Meu neto me acha ridículo

Paulo Rosa
Caps Porto, Ambulatório Saúde Mental, Telemedicina PM Pelotas, Hospital Espírita
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Esclareça-se que apenas um de meus cinco netos - o mais velho - me percebe nessa condição. Com Rafa tenho uma relação de igualdade, isto é, hierarquia zero. Não vai ser porque tenho 80 e ele 18 que aceitaríamos existir entre nós qualquer assimetria. Somos de igual para igual. Desde os quatro anos, quando, sentados no chão, ele me explicou que ao vestir a roupa de Homem-Aranha "eu viro ele, vô", que nos tornamos assim, "mano a mano". A gozação com a cara do outro é livre, não deixamos passar uma sem que nos alfinetemos e estamos sempre a procurar situações de cada um que sirvam de motivo para gozações. Algumas de duvidoso gosto, consideremos.

Rafa me acha ridículo, por exemplo, porque trabalho dez horas por dia, cinco vezes por semana, como fiz a vida toda. Segundo o dito eu deveria, hoje, ficar em casa e, no máximo, regar as plantas ou espanar o pó. Ele procura sempre assinalar minha idade avançada que, na cabeça fraca dele, é sinônimo de inércia.

Também me aponta como fútil porque, estando na nona década, não tomo nenhum remédio, fato que me alegra. Ele diz que não tomo qualquer medicação por ser apenas cabeça dura, e não porque não o necessite. Assim, me vê com vários achaques de velho, coisa que nego com veemência, embora não me dê crédito. Em contrapartida, eu o "acuso" de não ter profissão definida e de que ainda dependa economicamente dos pais, coisa que há anos deixei de sê-lo: estampo-lhe, sem delongas, na cara.

Agora, sua pior acusação para minha insensatez é de que me organizei para fazer pós-doutorado em Filosofia e Psicanálise, situação em que, segundo o avarento, estou tirando lugar de algum jovem doutor, com "um futuro pela frente". Eu lhe digo, sem nenhum rancor identificável, que se preparar para a morte que se aproxima pode ser um belo programa de vida. Faze-lo com dedicação e energia, ativamente, aquilo que se gosta é proposta que escapa ao desmiolado. Motivo para rirmos desbragadamente.

Também não entende, nem aceita, que estejamos construindo casa no Laranjal, "se tu não vai nem ter tempo de morar". Rebato-lhe que a inveja corrói corações empedernidos, ao que reage apenas com cara de paisagem.

Busco intimidá-lo culturalmente, lembrando que com sua mãe, quando guria, decorávamos passagens do norte-americano Henry David Thoreau: "fui à floresta viver deliberadamente, sugar tudo que é vida… para que não, ao morrer, descobrir que não vivi". O insensível retrucou, dizendo "é isso que, ao morrer, tu vai descobrir", usando ainda passagem do Nietzsche, procurando me acachapar: "a maioria pede convicções, a minoria, certezas". "Não trabalho com certezas", assegurei. Contei-lhe, então, que nos anos 90 dei uma aula na Harvard, na cadeira do pediatra Terry B. Brazelton, o que foi interessante como experiência. "De que te adianta isso hoje?", desqualificou.

Se sou ridículo, Rafa, em compensação, é coração pétreo. Riso solto.

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