Editorial
Sem paralelos para Rita
A música, a cultura, a construção do espírito crítico e questionador essencial a qualquer País - sobretudo ao Brasil - sofreram um baque ontem. Morreu, aos 75 anos, Rita Lee, figura tão gigante e insubstituível que, antes mesmo de se despedir, ao escrever sua autobiografia, tratou de ela própria contar aos seu milhões de fãs como seria a repercussão do dia de sua partida. Disse ela: "Quando morrer, posso imaginar as palavras de carinho de quem me detesta. Algumas rádios tocarão minhas músicas sem cobrar jabá. Fãs, esses sinceros, empunharão meus discos e entoarão 'Ovelha negra', as TVs já devem ter na manga um resumo da minha trajetória. Nas redes virtuais, alguns dirão: 'Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk'".
A previsão direta e sem rodeios, contida no livro lançado em 2016, mostra em algumas linhas um pouco do que era Rita Lee. E daquilo que transparecia em sua obra. Bem humorada, sarcástica, desprovida de autopiedade, a roqueira cansou de provar ser totalmente conectada ao seu tempo. A ponto de, com deboche, traduzir estes dias estranhos em que a originalidade e qualidade da produção artística são suplantadas pelo dinheiro do "jabá" que decide quem toca e tem divulgação. Em que a relevância está na produção frenética de conteúdo para as redes sociais, em que é preciso ser influenciar para não ser considerado "morto".
O tempo de Rita Lee foi sempre o hoje, mas pensando daqui para frente, contestando. Desde que surgiu com o tropicalismo de Os Mutantes na década de 1960, até os últimos dias de sua carreira, foi muito mais do que uma cantora de voz hipnotizante e composições marcantes. Quase sempre cantou, escreveu, deu entrevistas e se manifestou para causar desconforto. Foi feminista em um universo ainda mais machista que o atual, libertária e crítica quando pensar diferente era um risco, desvinculada da militância política óbvia e apaixonada quando a maioria optou pela defesa cega de heróis engravatados. Seu palanque era o palco e era político, mas jamais ao lado dos políticos e do poder. Tanto que, naquela que deveria ser sua despedida dos shows, em Aracaju em 2012, chegou ao extremo simbólico de ser detida ao confrontar policiais.
Hoje, Rita Lee de fato toca sem parar nas rádios que até anteontem enfileiravam músicas sem sentido impulsionadas pelo jabá. As TVs exibem obituários e clipes resumindo uma trajetória irresumível. Os fãs não param de exibir e exaltar seus discos e fotos. Tudo como ela previu. A maior roqueira do Brasil só errou ao achar que se destacariam as palavras de quem a detestava. Em vida e agora, em sua morte, Rita recebeu uma avalanche de manifestações de carinho de quem a ama. E esta imensa maioria, que abafa e constrange quem ousou não gostar dela, é o reconhecimento a uma artista de legado incomparável. E sem qualquer paralelo em importância para a cultura e a sociedade brasileiras.
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