Opinião

Tomaz Cachaço

Por Sergio Cruz Lima
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Em meados do século 19, época florente do contrabando de escravos e do Valongo, vivia na capital do Império do Brasil um português de altura mediana, gorducho, de olhos azuis esbugalhados, meio calvo, alourado, barbudo e pançudo, conhecido pelo apelido de Tomaz Cachaço. E o que fazia Tomaz Cachaço? Em que se ocupava esse cetáceo humano que, de palmatória no bolso, errava nas bandas da Prainha, entre as ruas São Pedro e da Saúde? Ora, Tomaz Cachaço ensinava doutrina cristã aos negros novos, frequentava os armazéns do Valongo, que comercializavam escravos recém-chegados da África, e as casas particulares que os abrigavam, recebendo um ou dois mil réis mensais pelas lições de reza.

Apenas Tomaz Cachaço surgia ao longe, os negros tornavam-se fulos de medo, a doutrina aprendida de cor apagava-se-lhes da memória, e o sinal da cruz começava a ser ensaiado de baixo para cima, do ombro para a testa, de trás para diante, tal o temor que revelavam. De mais perto, o pançudo mestre de reza sacava da palmatória, tirava o velho chapéu descolorido e desbeiçado, limpava com um lenço de Alcobaça o toutiço nédio e fazia a sua investida na escola dos negros feros. E a bolaria, de pés atrás, roncava por mais de uma hora, instrumentada de gritos, choro e súplicas, acolitados de vocábulos bárbaros e semibárbaros.

"Hei de ganhar o céu ensinando a estes pagãos. Coragem não me falta! O ideal me ilumina! As forças me sobram! Se não fosse a miséria em que vivo, teria sido ministro do senhor dom Pedro I", dizia Tomaz Cachaço. E, andando em bolandas, buscava o recreio do dia.

Finda a aula, o mestre puxava a sovada caixa da amostrinha, retirava uma pitada e, entupindo as fogosas ventas, preparava-se para sair. Os negros aproximavam-se, respeitosamente dobravam o joelho, estendiam a mão rogando a bênção. E retiravam-se. Se algum, porém, adiantava-se, implorando atemorizado qualquer explicação, o obeso e ofegante mestre empunhava novamente a palmatória, e a cada erro no pai-nosso ou na ave-maria, fazia-o repetir a palavra ou a frase, interrompendo a reza: "Não! Esta não engulo eu!"

Conta-se que Tomaz Cachaço faleceu em meados do governo de dom Pedro II. Deixou um nome como doutrinador e tipo, que era, do tempo e da rua.

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