Artigo

Turno da madrugada: leitura de risco

Por Paulo Rosa
Sociedade Científica Sigmund Freud, Hospital Espírita
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Os que leram a antologia de crônicas de Mariana Ianelli, Turno da madrugada, Ardotempo, Porto Alegre, 2023, falam, em uníssono, de um abalo. Abalo não apenas no sentido de impacto que te tira o sono e te obriga a pensar, mas também de um sismo de ternura, como quando ela relata sobre sua mãe como "médica" de uma clínica de quadros, no seu paciente trabalho amoroso de restauração. Nada pouca a função de revitalizar trabalhos de arte, como algo de essência de combate para estes tempos combalidos pela gun culture dos norte-americanos e sequazes.

Livro é remédio. Quem não sabe? Se o amigo anda sorumbático, nada como servir-se da crônica Entre remédios e venenos literários, pág. 183. Ali a poeta relata o feito de duas amigas inglesas que, no tempo da faculdade, elas se divertiam imaginando que ler tal ou qual livro poderia ser 'curativo' para tal ou qual enfermidade. Com o tempo, foram estudando e, por fim, são hoje biblioterapeutas e "desde então vêm prescrevendo livros como unguentos". Mas, alerta, a diferença entre remédio e veneno é só uma questão de dose. "Depende de quem a ministra. Depende também, claro, de não tratar vírus com vermífugo [ivermectina] ou com remédio para a malária [cloroquina]. Caso contrário, a biblioterapia pode virar biblioludíbrio". Ou seja, uma forma de biblioengodo, uma perversão dos tratamentos.

Feitas as ressalvas, destaca Ianelli que "Ella Berthoud e Susan Elderkin lançaram [2016] Remédios Literários, um manual de biblioterapia para maleitas de A a Z...manual de socorros literários...aos melancólicos do próprio aniversário...a prescrição é a leitura de Os filhos da meia-noite de Salman Rushdie. Às recém-chegadas à menopausa, O verão antes das trevas de Doris Lessing...", e assim por diante.

Mas a poeta arrebenta em Democraticamente armados. Aqui diz: "agora esta infestação de armas numa gigantesca barbárie autorizada. É o polícia que hoje abertamente se excede ou se antecipa, é a adolescente de classe média toda paramentada treinando tiro... gente que gosta de caça, de ameaça, da farsa de autodefesa e do embuste chamado bala perdida". Simples avaliar: não existe bala perdida, e sim bala orquestrada, com efeito mortal e intimidante, o que te faz temer sair de casa, porque constantemente te fazem lembrar que és o vulnerável, sinalizando quem tem o poder.

É um livro pulsante, perturbador, cujo valor pedagógico me trouxe a grata recordação do filósofo e matemático francês, Marquês de Condorcet, que já no século 16 ensinava que a verdadeira educação produzia alunos indóceis e difíceis de governar. Este Turno da madrugada, se bem o percebo, te estimula a ser exigente para contigo e para com os demais, de modo que a alma só venha merecer descanso após detido e constante trabalho de avaliação das circunstâncias todas do eu.

Um oxímoro: um livro do opressivo alívio na madrugada da poeta em prosa.

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