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Os 135 anos de uma abolição ainda mais tardia em Pelotas

Na data em que o mais triste capítulo da história do Brasil foi formalmente encerrado com a Lei Áurea, DP relembra como a cidade lidou com o momento

Douglas Dutra - DP - Mattozo coordena projeto que visa resgatar a memória do negro em Pelotas

Uma panela de pressão. Assim podia ser descrito o clima social em maio de 1888, quando a Lei Áurea foi finalmente assinada pela princesa Isabel, dando fim ao período mais lamentável da história do Brasil, um País que durante a maior parte da sua existência contou com mão de obra forçada, sendo o último das Américas a acabar com isso. Em Pelotas, a decisão demorou cerca de um mês a ser totalmente aplicada diante da precariedade das comunicações da época e por interesses de escravocratas. Porém, antes disso, a cidade já havia feito manobra jurídica para vender a imagem de um Município livre da escravidão, o que não se confirmava na prática.

Embora a assinatura da Lei tenha ocorrido após uma tramitação ágil, esse cenário só existiu por uma pressão que vinha crescendo na última década, até tornar insustentável a manutenção da instituição escravidão. Pelotas, inclusive, foi um local em que o temor de uma grande revolta preocupou o Império, aponta o coordenador do Projeto Museu do Percurso Negro, Luís Carlos Mattozo. Com cerca de 60% da população negra, os quilombos urbanos e grupos abolicionistas já vinham preocupando os escravocratas.

Mattozo relembra que, apesar da absurda rigidez do encarceramento e do trabalho forçado nas charqueadas, o negro em Pelotas foi muito resistente. “Construiu várias organizações sociais de ajuda mútua, clubes de homens e mulheres negros que trabalhavam em favor da liberdade”, ressalta. Ele cita como exemplo os quatro jornais negros que circulavam pela cidade. “Havia uma população negra extremamente articulada”, aponta, destacando também a resistência armada, com contorno de guerrilha, comandada por Manoel Padeiro, lembrado por muitos como o “Zumbi dos Pampas”, que chegou a constituir um quilombo na Serra dos Tapes. “Ele causa na cidade um alvoroço completo”, diz, lembrando que à época Pelotas recebia notícias de outras partes do País sobre outras revoltas como a dos Malês, na Bahia, e até uma tentativa própria de resistência, com a dos Nucas Raspadas, em 1835.

O coordenador do projeto do museu pelotense chama atenção ainda que, no centro do Brasil, a cidade chegou a ser considerada “o inferno da escravidão”, devido à rigidez com que os escravizados eram tratados na lida com o charque. “Chega a um ponto de a Câmara [de Vereadores] remeter uma ata para o Império pedindo que não mandem mais escravizados do centro do País para Pelotas porque eles acham que essa presença aqui poderia ampliar a organização de resistência”, aponta.

Trabalho por comida
O mestre em História Euler Zanetti estudou a forma como a Lei Áurea foi noticiada. Ele diz que, ao longo dos anos anteriores, a temática abolicionista foi tomando conta da cidade, com clubes, grupos e centros ganhando voz. A questão chegou a um ponto em que Pelotas fez uma manobra jurídica para se declarar “cidade sem escravos”, em 1884, após acordo em que se ofereciam contratos de prestação de serviço ao escravizado em troca de moradia e alimentação. Ou seja, na prática pouco mudava, já que, naquela época, as punições violentas já eram menos recorrentes devido a outras legislações. ​

“Se discutia que o negro precisava aprender a ser livre”, conta, destacando que, naquele momento, mesmo alguns ditos abolicionistas eram contrários a um fim súbito da escravidão. Também por isso, após a Lei Áurea, a mão de obra foi trocada pela de imigrantes, já que muitos acreditavam em um estereótipo de que os negros não saberiam aliar liberdade e trabalho e estariam destinados a “farrear”.

Em Pelotas, abolição em junho
Após assinada a Lei Áurea, a notícia custou a chegar em Pelotas. Tanto pela comunicação, basicamente telegramas, quanto por omissão dos escravocratas. “A escravidão não acaba no dia 13 de maio em Pelotas. No dia 14 a produção continua”, afirma Zanetti. O historiador relata que pesquisas indicam que a abolição só ocorreu quase um mês depois, entre os dias 6 e 8 de junho. No entanto, muitos ainda foram mantidos no regime de contratos de trabalho. “[Essa população] ficou empregada tecnicamente, mas se mantiveram ainda na condição de escravizados. Isso se mantém durante um bom tempo”, diz Mattozo.

Muitos outros foram jogados à rua. Mattozo lembra que, mais de uma década depois, em 1900, Pelotas tinha alta taxa de moradores em situação de rua. Problema que inspirou Luciana de Araújo a fundar o Instituto São Benedito, para acolher crianças órfãs nessa situação. Já Zanetti aponta que a atrocidade da escravidão ficou impune, mesmo quando se convencionou o quão desumano era o regime. “Não houve nenhuma forma de indenização aos libertos. Era cada um por si.”


Um povo que resistiu

“Se trata muito do negro como mão de obra escrava nas charqueadas, mas a gente tem feito um trabalho de resgatar outros fatos históricos que ressignificam a visão sobre o papel do negro”, relembra Mattozo. E uma dessas questões foi em uma das principais batalhas da Revolução Farroupilha, que ocorreu no Passo dos Negros, onde hoje fica a Chácara da Brigada Militar. Graças ao grupo que daria origem aos Lanceiros Negros, Pelotas foi defendida do avanço do Império. “Os negros foram imprescindíveis para a defesa da cidade”, aponta.

Ele cita outras figuras, como o próprio Manoel Padeiro, Luciana de Araújo, o artista plástico Miguel Barros, os clubes como o Fica Ahí, Chove Não Molha e tantos outros grupos que criaram rede de ajuda mútua e proteção na cidade toda, antes e depois da escravidão. “A presença do negro na cidade transcende o aspecto da escravidão.” Mattozo celebra que, em uma cidade de cultura negra forte, haja o resgate através de ações como o Festival Cabobu, com a força do sopapo como instrumento de resistência, além do reconhecimento do papel da cultura africana na estruturação da tradição doceira e do reconhecimento do papel da comunidade negra na consolidação de outros espaços.

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