História

Sofrimento não impedia mobilização dos escravizados

Mesmo preocupados com questões básicas de subsistência, surgiram quilombos como o liderado por Manoel Padeiro, que chegou a abrigar mais de 800 pessoas

Não era somente a produção de charque que dava a Pelotas reconhecimento em todo o país. A perversidade com que os escravizados eram tratados também rompia fronteiras. Não raro, dois ou três trabalhadores insurgentes de regiões como o Sudeste e o Nordeste do Brasil eram trocados por apenas um cativo que atuava por aqui, como forma de castigo a quem era encaminhado para o sul do Sul do Sul. A combinação entre o rigor das baixas temperaturas do inverno e o contato repetitivo com o sal que corroía os dedos era só um dos elementos que os aterrorizava.

"Aqui o castigo também era mais sagaz. Além dos açoites mais severos, a utilização do sal nas feridas abertas agravava o sofrimento e configurava requintes de crueldade", afirma o presidente da Comissão de Igualdade Racial da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pelotas, Fábio Gonçalves. E era, justamente, por conta de um olhar mais voltado à subsistência que os escravizados se desconectavam de questões macro, de abrangência mais ampla - explica. As atenções concentravam-se, principalmente, à sobrevivência.

Na prática, entretanto, esses homens e mulheres sentiam os efeitos das decisões ocorridas no centro do país. Passados menos de dez anos da Independência, começava a surgir uma série de leis com objetivo bem claro: barrar possíveis rebeliões, já que os cativos representavam a larga maioria da população. Havia uma ameaça iminente, portanto. "Surgem diplomas (leis) para poder controlar esta imensa massa de seres humanos tratados como propriedade", enfatiza o advogado e historiador.

Em 1830 foi criado o primeiro Código Criminal do Brasil. Dois anos mais tarde, em 1832, era a vez do Código de Processo Criminal, que estabelece ritos sumários rápidos, quase sem possibilidade de defesa para o escravizado pego em algum tipo de crime. Já em 1835, o ápice: a pena de morte. "Com esse conjunto de leis, as cadeias públicas vão ficar atulhadas, em especial na segunda metade do século 19, o que se acentuou após a abolição".

Engenho de carne seca no Sul do Brasil Jean Baptiste Debret 1829
Engenho de carne seca no Sul do Brasil [Charqueada em Pelotas] - Jean-Baptiste Debret, 1829

Lutas e lideranças também entre os cativos

Se entre a elite branca existiam nomes de peso nas tomadas de decisão, entre os escravizados não era diferente. Havia lideranças de uma ponta a outra do país. E o que não faltavam eram razões para mobilização. Insurgências que cruzaram os séculos. Desde a chegada do primeiro tumbeiro no Brasil, em meados da década de 1530, houve resistência. "Aliás, no translado já havia insurgência. Não foi diferente aqui no Sul", enfatiza Fábio Gonçalves.

O doutorando em Direito aproveita para relembrar do que intitula como a maior experiência republicana já registrada no Brasil: o aquilombamento de Palmares que surgiu em 1597, na Serra da Barriga, e durou praticamente um século, com várias lideranças, inclusive, femininas. Na 'Grande Pelotas' - que incluía áreas de Arroio do Padre, Turuçu e regiões próximas a Canguçu e a São Lourenço do Sul -, o movimento foi encabeçado por Manoel Padeiro, o Zumbi dos Pampas. O quilombo, que teve o auge por volta de 1850, chegou a acolher entre 820 e 840 pessoas, na Serra dos Tapes: negros, indígenas e brancos pobres; entre eles muitas mulheres.

E o levante não parou por aí. Na carona do processo liderado por Manoel Padeiro, há a formação de outros aquilombamentos, como o Alto do Caixão e o Vó Elvira, também em Pelotas. "E ele acaba morto pelas tropas regionais, que muito foram engrossadas pelas tropas nacionais. Só assim o quilombo da Serra de Tapes deixa de existir", conta o historiador. "Não era fácil desarticular estes focos de resistência".

 

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