Artigo

Uma pornografia nada pornográfica

Por Eduardo Ritter - Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel

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Eu devia ter uns 14 ou 15 anos quando vi um filme pornô pela primeira vez. Ok, sei que muitos nessa idade já estavam colocando o troço em prática, mas antes dessa idade a minha vida girava 100% em torno de futebol (jogando e assistindo). Na ocasião, um primo mais corajoso conseguiu alugar um filme em uma locadora da cidade e logo virou freguês. Com a mesma idade que eu, em pouco tempo ele estava chamando a turma toda para assistir. Não demorou muito para eu também criar coragem e encarar a tiazinha da locadora para fazer minhas próprias locações. O que logo me chamou a atenção nesses filmes era a falta de uma história minimamente crível para além das trocas carnais.
Eram enredos muito bizarros, do tipo, a mulher tomava banho de sol, chegava um cara para limpar a piscina e em dois minutos já estavam copulando com um malabarismo tão artificial e forçado que tornava tudo broxante. Enfim, nada muito diferente dos milhões de filmes que hoje em dia podem ser assistidos na internet ou daqueles que ficam passando nas TVs dos motéis. Por isso me chamou a atenção o resumo da contracapa do livro Pornografia, do escritor polonês Witold Gombrowicz (1904-1969), que dizia que o livro “nada tem de propriamente pornográfico”. “Pois duvido”, pensei comigo mesmo, levando a obra para casa.
Terminei de ler o livro, que tem exatamente 204 páginas, agorinha há pouco e confirmo: o livro não tem absolutamente NADA de pornográfico. Na verdade, não faz nenhum sentido esse título. Há mil títulos possíveis para a história que Gombrowicz criou, mas Pornografia não é um deles. Com certeza se o ChatGPT tem alguma utilidade para escritores hoje em dia é para dar ideias de títulos. Seria muito útil para o autor polonês, que deixou seu país natal assim que a guerra começou, migrando para a Argentina em 1939.
A história do livro, escrito em 1960, acontece na Polônia de 1943, em meio à Segunda Guerra Mundial. A narrativa é em primeira pessoa, contada na voz do personagem Witold, que aceita um convite de um aristocrata para passar alguns dias na sua fazenda. Para tal empreitada, ele convida o seu amigo Fryderyk. Chegando lá, eles conhecem o trio: Karol (um jovem de 16 anos), Henia (uma jovem de 16 anos, amiga de Karol desde a infância) e Waclaw (mais velho que os dois e noivo de Henia). Witold e Fryderyk, ambos quarentões completamente transtornados, apaixonam-se por Karol e Henia e decidem que os dois devem formar um casal e começam a criar situações para aproximá-los. Em meio a isso, acontece um assassinato e chegam personagens inesperados (em um contexto de guerra). A narrativa prende a atenção do leitor até a última linha, pois o texto desperta a curiosidade sobre o que vai acontecer com cada um dos personagens. Em síntese, é um bom livro, mas não tem nada de nada de pornô: nenhum palavrão, nenhuma cena de sexo (nem um beijinho sequer) e nada que faça lembrar os filmes que eu assisti nos anos 1990.
Portanto, se você quer uma boa história literária sem pornografia, Pornografia é uma boa dica. Caso contrário, há outras obras mais calientes que também posso te sugerir. Enquanto isso, nunca mais vou duvidar do resumo da contracapa de qualquer livro.

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